
Luís Filgueiras, Graça Druck (mediadora), Carlos Zacarias e Paulo Fábio Dantas: definições do regime político em montagem no país
Em debate no auditório Guaraci Adeodato, no campus de São Lázaro, sobre o novo quadro político brasileiro definido pelo resultado das eleições presidenciais, os professores Luiz Filgueiras, da Faculdade de Economia, Carlos Zacarias e Paulo Fábio Dantas, ambos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, apresentaram suas distintas visões como contribuição ao tema “Democracia e fascismo”.
O evento foi organizado pela Faculdade de Economia, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS), Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) e o Grupo de Pesquisa em História dos Partidos e Movimentos de Esquerda na Bahia.
Luís Filgueiras , o primeiro palestrante, ressaltou de saída o desafio que é analisar um fenômeno tão novo quanto a ascensão da extrema direita na sociedade brasileira. “Tudo é muito recente e ainda estou tentando compreender para poder dar uma resposta”, disse, ao elencar como objetivos dos seus esforços (1) entender o significado e a natureza da extrema direita no Brasil e (2) definir as estratégias das forças democráticas para enfrentá-la.
O crescimento da extrema direita e das ideologias e concepções neofascistas, segundo ele, podem ser notadas no país desde as manifestações de rua de 2013, que culminaram com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, “impulsionado por forças políticas como as grandes corporações nacionais e internacionais de olho mas riquezas brasileiras, partidos políticos privatistas e igrejas evangélicas, especialmente as pentecostais, que têm estimulado uma guerra cultural contra os direitos das minorias, com repressão à sexualidade e às artes”. Soma-se a tudo isso, ressaltou, a atuação de um poder judiciário partidarizado e a aproximação das forças armadas com o governo eleito através de generais reformados.
São características desses movimentos fascistas o apelo às forças policiais extremadas, o moralismo e tradicionalismo, a negação dos direitos humanos, a exaltação do liberalismo e da meritocracia, o nacionalismo retórico e o fundamentalismo mágico religioso, com a mercantilização da fé. “Um discurso com apelo fortemente emocional e viés de irracionalidade, anti-intelectual e com ideias simplistas e pouca reflexão é típico desses movimentos. Exemplo disso é a propaganda em favor do armamento da população como forma para solucionar o complexo problema na segurança pública no país”, destacou.
Na conjuntura atual, esse movimento cresce a partir da classe média que perdeu poder econômico, gerando uma massa de desempregados e uma juventude sem perspectiva e com dificuldades de formação. Os neofascistas se organizaram a partir das redes sociais, estabelecendo uma outra forma de socialização que estimula o individualismo e dá origem ao que foi denominado de “fascismo digital”. “Apesar de uma aparente descentralidade, há uma produção de discurso a partir de centros invisíveis que estão disseminados nas redes sociais, gerando identidade e sensação de pertencimento, como uma espécie de partido virtual, observou Filgueiras.
Essa forma de funcionar e a capilaridade acabam por desresponsabilizar o chefe dos diversos crimes de ódio cometidos por seguidores. “Contudo, é evidente a sua atuação como centro gerador de ideologias e valores que orientam ações de grupos que se sentem legitimados a cometer todo tipo de barbaridade. Isso vai continuar com o governo Bolsonaro”, previu ele, que também chamou atenção para o estímulo à guerra cultural na sociedade como forma de desviar as atenções das propostas econômicas e sociais do governo eleito que serão gravíssimas para a classe trabalhadora.
Filgueiras abordou ainda semelhanças e divergências do movimento em curso no Brasil em relação ao fascismo histórico. Nos países da Europa e nos Estados Unidos, os movimentos neofascistas surgem diante de um contexto de hegemonia do capitalismo financeirizado internacional. “O capitalismo financeirizado produziu um processo de concentração de renda, precarização do trabalho, desemprego e pobreza, com a piora generalizada das condições de vida da população”, ressaltou
Segundo o professor e economista, justamente a crise provocada pelo neoliberalismo, incapaz de atender às necessidades básicas das pessoas, alimenta sentimentos de caráter nacionalista, levando-as a passar a ver como ameaça o diferente, o imigrante, as minorias. “No Brasil, o fascismo emergente não é nem nacionalista e nem protecionista. É um nacionalismo entreguista que começa e termina com o hino nacional e a camisa da nike da seleção brasileira de futebol”, observou.
Fascismo: Origens e Estágios
Segundo palestrante do evento, Carlos Zacarias tratou do surgimento do fascismo no século XIX como um fenômeno ligado à política de massas, que entra em cena com a participação de setores antes alijados da vida política, até ali reservada apenas às “classes superiores”.
Ele lembrou que o fascismo começa a se agigantar na Itália, com o fim da Primeira Guerra Mundial. O país tinha uma posição secundária na corrida imperialista, era um país capitalista retardatário onde as massas não tinham suas necessidades atendidas e que ainda sofria as consequências da guerra.
“Essas massas passam a fazer suas reivindicações,a ocupar espaços e a interferir nos processos decisórios, e é nesse contexto que prospera o sentimento nacionalista, que vê o outro como uma ameaça, como aquele que vai tirar seu emprego e seus direitos. O que permitiu que um projeto fascista chegasse ao poder através do processo eleitoral”.
O professor observou que o movimento inicial deu origem a outros fascismos genéricos que se reproduziram em várias partes do mundo como o Brasil, também um país de capitalismo retardatário, com uma burguesia de características autocráticas, “capaz de todos os acordos desde que continue comendo as migalhas do imperialismo”. De tempos em tempos, observou, ela “lança mão da ditadura para sonegar direitos às classes populares, que nunca foram parte de um projeto nacional de integração e que são torturadas e assassinadas cotidianamente”.
Carlos Zacarias vê o país à beira de uma nova ditadura,” que pode não ser dos tanques, mas das togas, das leis”. No panorama atual ele enxerga vínculos com o processo de saída da última ditadura no país (1964-1985), com uma anistia que não assegurou verdadeira reparação às vítimas nem promoveu um acerto de contas que permitissem superar os principais problemas legados ao país, “fazendo grande parte da população ser vítima de um estado de exceção permanente”.
O terceiro palestrante, Paulo Fábio Dantas, embasou parte de sua reflexão no livro “Anatomia do fascismo”, de Robert Paxton, que o define como um sistema de autoridade política e ordem social com o objetivo de reforçar a unidade, a energia e a pureza de comunidades. O autor, na explicação de Paulo Fábio, defende a necessidade de se verificar os estágios que fazem com que uma democracia seja tomada pelo fascismo, o que tem início com o surgimento de um movimento em busca algum tipo de renovação nacionalista para restaurar a ordem social rompida. Esse movimento ganha partidos políticos e organicidade e, num próximo estágio, promove a aliança entre as elites conservadoras e as legiões de descontentes da extrema-direita. Uma vez no poder, há uma emergência de lutas políticas entre essas duas forças antagônicas para determinar o caráter do regime. E por fim, em um estágio final, verifica-se uma “radicalização ou entropia”, quando os vencedores encontram apoio dos mais poderosos para legitimar suas tentativas de desobediência civil.
Paulo Fábio explicou que não consegue observar a implantação de todas essas etapas no cenário nacional, e disse que seria uma “jabuticaba brasileira” o fascismo adentrar o sistema político nacional sem antes se constituir como um campo de poder organizado. E como vê o fascismo como “um movimento político que pressupõe mobilização das massas e organicidade”, ele não acredita que haja um fascismo em gestação no país.
Na sua concepção o que ocorre no país é um um sistema de cooptação das massas que lhes retira a capacidade de organização, com repressão das demandas populares. Em vários momentos da política nacional, aponta ele, o autoritarismo quebra a capacidade de mobilização das massas e, com isso, não é possível saber se elas teriam seguido rumo a uma revolução ou para o fascismo.
O professor preferiu utilizar o conceito de autoritarismo para compreender a conjuntura brasileira. Afirmou acreditar nas instituições republicanas e que a democracia não vai abrir brechas para a subversão da ordem e a expressão do mal-estar generalizado desfavorecerá o autoritarismo. “Temos uma sociedade civil mais plural e democrática que em qualquer outro momento da história”, destacou.
“O momento é de ficar alerta, não de ter medo ou entrar em desespero”, disse, sugerindo a criação de uma ampla frente democrática para moderar o governo eleito, que estabeleça o diálogo com um “centro radical”, capaz, em seu entendimento, de trazer elementos para uma esquerda renovada e renovadora.
A mediadora da mesa de debates, Graça Druck, professora do departamento de Sociologia, alertou para a gravidade do momento que vivemos, dado o fato de ele conter uma real ameaça à democracia brasileira, o que jamais pode ser encarado com naturalidade. Defendeu a definição de estratégias de mobilização para a resistência ao que se anuncia e informou sobre a recente criação do Comitê Antifascismo e em Defesa da Democracia no campus de São Lázaro. Comitês semelhantes foram criados em outras unidades da UFBA< como a Faculdade de Educação e a Escola Politécnica.