
“O investimento em ações afirmativas não está à altura do que é necessário. Seria preciso investir muito mais”, disse o sociólogo David Lehmann
Os beneficiários das ações afirmativas no Brasil nem sempre recebem o apoio adequado e tendem a se sentir desolados no ambiente acadêmico, o que pode afetar o seu desempenho. A constatação é do professor David Lehmann, da Universidade de Cambridge, em palestra no Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da UFBA. “O investimento em políticas de ações afirmativas não está à altura do que é necessário. Seria preciso investir muito mais”, disse o sociólogo.
Lehman participou, na quinta-feira, 22, da mesa-redonda “Relações raciais e o multiculturalismo no Brasil vistos sob uma perspectiva comparativa internacional”, com a participação também dos professores Antonio Sérgio Guimarães (USP), e Osmundo Araújo Pinho (UFRB e Pós-Afro/UFBA). O evento foi a principal atração da programação do Novembro Negro do Ceao, na semana marcada pelo dia da Consciência Negra, celebrada no dia 20 de novembro.
David Lehmann apresentou uma reflexão sobre as relações raciais no país associada a fatores como o estado corporativo, a atuação do poder judiciário e dos movimentos sociais. O sociólogo, que dirigiu o Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade de Cambridge por dez anos, recordou a campanha para a criação das cotas raciais que teve início na Universidade de Brasília e gerou muita polêmica, inclusive dentro da própria universidade pública, particularmente em relação à classificação racial. A legalidade da medida foi questionada, e o caso foi julgado pelo STF em 2012, que decidiu, por unanimidade, pela constitucionalidade das cotas raciais como forma de corrigir o histórico de discriminação racial no país.
Estudioso das ações afirmativas no Brasil, com o foco no sistema de cotas em instituições de ensino superior, Lehmann considera que “o propósito dessas ações é permitir que as pessoas possam desenvolver o seu potencial”. Puderam acessar essas vagas educacionais especialmente os estudantes de bairros pobres e com dificuldades de acessar a educação e que carregam o peso da exclusão, conforme constatou o professor, que tem amplo conhecimento e realidade brasileira e latino-americana, por já ter atuado como professor visitante no Brasil nas universidades de Brasília, São Paulo e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e além de países como Equador e França.
Ele abordou ainda a questão das fraudes no sistema de cotas, o que resultou na adoção de medidas para aferição da autodeclaração dos candidatos cotistas, como a necessidade de envio de fotos e formação de bancas para avaliar quem tem direito ou não de acessar a vagas reservadas. Hoje, a heterodefinição – ou seja, a definição por bancas especializadas – é a norma para a identificação dos candidatos através de comissões de averiguação.
De acordo com o professor, os intelectuais negros pensaram o sistema de cotas como uma forma de criar oportunidades e permitir à população negra uma ascensão social. Ele sinalizou o surgimento de um novo movimento negro na atualidade, com a valorização das questões estéticas e a força do feminismo negro, e criticou a falta de avaliação por parte do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) desse grande experimento social que é o sistema de cotas.
Lehmann promove no país o lançamento do seu livro “The Prism of Race”, que traz uma análise das políticas e ideologia das ações afirmativas no Brasil, com o enfoque para as cotas raciais e a sua percepção pública, especialmente no sistema de cotas nas universidades públicas.
Crise da “nação mestiça”

Antonio Sérgio Guimarães apontou como um dos desafios a serem enfrentados a alta mortalidade violenta de jovens negros
Na sequência, Antonio Sérgio Guimarães trouxe para o debate a questão da mestiçagem e seus sentidos, apresentando distintas visões acerca do conceito, entre as quais está a ideia da criação de uma cidadania homogênea, forjada através do processo de mestiçagem. O professor apresentou diversas estatísticas produzidas por institutos de pesquisa brasileiros sobre as relações raciais, incluindo o senso da população residente no país por cor e cor/raça, com a inclusão de categorias como “morena” e “morena clara”.
Em um comparativo ao longo das últimas décadas, é possível notar a diminuição de número de pessoas que se declaram brancas desde 1940, o que ele atribui, em parte, à atuação de conscientização dos movimentos negros e às ações afirmativas. Sobre o sistema de cotas, observou que o ordenamento jurídico no Brasil toma raça como fenótipo para medidas de verificação e evitar fraudes.
No seu entendimento, a crise da ideia de uma nação mestiça se dá a partir da década de 1980, em um ambiente internacional de democratização, multiculturalismo e a defesa dos direitos humanos. Nesse contexto, o racismo passou a ser definido como estrutura de desigualdades e organizações negras e indígenas ganharam voz e legitimidade.
Na atualidade, em um cenário de ameaça a muitos desses avanços, ele apontou como desafios a serem enfrentados a alta mortalidade violenta de jovens negros na guerra contra as drogas, a precariedade e insegurança da vida em periferias urbanas, a desobediência da lei das cotas, o racismo e sexismo explícitos e a ascensão do uso de linguagem politicamente incorreta.

Osmundo Pinho criticou a reação de parcela da população privilegiada que se incomodou com a reivindicação de direitos por grupos sociais tradicionalmente excluídos
O terceiro debatedor, Osmundo Araújo Pinho, recordou as previsões apocalípticas sobre as ações afirmativas no Brasil, que diziam que a sociedade iria se dividir e aumentar o racismo na sociedade. Também criticou a reação de parcela da população privilegiada que se incomodou com a reivindicação de direitos por grupos sociais tradicionalmente excluídos como negros, mulheres e gays.
O professor da UFRB compartilhou a sua experiência na participação de bancas de aferição para acesso ao sistema de cotas na universidade, o que acredita ser importante para fiscalizar o cumprimento adequado das políticas públicas em seus objetivos. Citou casos subjetivos que tornam essa tarefa de aferição delicada e outros casos de desacordo flagrantes, em que candidatos que pleiteavam as referidas vagas tinham os olhos azuis e a pele rosada. No entanto, ponderou que são minoria os que se declaram dentro dos critérios de elegibilidade para as vagas e não são reconhecidos. “É o caso de um (candidato) para cada 50”, revelou.
Por fim, ele atribuiu a eleição do próximo presidente da república, entre outros fatores, ao “velho racismo brasileiro”, e afirmou que é preciso definir novas estratégias de resistência diante do cenário atual e evitar retrocessos.
Miscigenação queer?

John Andrew Mundell e Jamile Borges em palestra no Ceao
Na quarta-feira, 21, o pesquisador John Mundell, mestre em Estudos Étnicos e Africanos pelo Pós-Afro/Ceao e doutorando pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, apresentou, também no auditório do Ceao, uma proposta de contra-leitura queer (campo que busca revelar, na cultura e na história, aspectos que escapam a uma interpretação ancorada no binarismo de gêneros) do romance naturalista “Bom-Crioulo”, escrito por Adolfo Caminha, em 1895, e do evento histórico conhecido como “Revolta da Chibata”, levante protagonizado por marinheiros negros contra as violências que sofriam na Marinha brasileira, em 1910. A mediação foi da professora do Pós-Afro Jamile Borges.
Atento às representações da chamada “democracia racial” brasileira em produtos da cultura popular – tema de sua pesquisa de doutorado, ainda não concluída -, Mundell propõe que o romance de Caminha, que narra um relacionamento homoafetivo entre um marinheiro negro e um jovem grumete branco, seja lido como uma tentativa de inversão das versões tradicionais do mito da democracia racial brasileira. Assim, em vez da fusão inter-racial, heteronormativa e procriativa representada em obras canônicas, como os romances “O Guarani”, de José de Alencar, e “A moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, “Bom-Crioulo” oferecia, já no final do século 19, um casal inter-racial distópico aos olhos das elites brasileiras, cujo ideal de miscigenação tinha como finalidade o “branqueamento” do povo brasileiro. “Caminha substituti o mito fundador defendido por essas obras, ao substituir a mulher negra ou indígena por um menino branco, colocado no papel de ‘penetrado'”, afirma Mundell, interrogando sobre a possibilidade de se pensar nos termos de uma “miscigenação queer”.
Sobre a Revolta da Chibata, Mundell sugere que o fato de a narrativa histórica sobre o evento ser pouco conhecida pela população se deve a uma intenção deliberada de ocultação do evento. Tal ocultação, por parte tanto da Marinha, quanto do currículo educacional básico, teria como razão tanto a virtual ligação da organização da revolta com o movimento “trabalhista transnacional” do princípio do século 20, quanto certa “afetação” de boa parte dos revoltosos, destacada pelo olhar do pesquisador. Ao interpretar uma fotografia do principal líder da revolta, Joao Cândido Felisberto, ao lado de um grumete branco, Mundell levanta a possibilidade do marinheiro ter “desejos homoeróticos”, traçando um paralelo entre Cândido e Amaro, o protagonista de “Bom-Crioulo”. Evidenciando o que lhe parecem trejeitos corporais de uma atitude homossexual no grumete da foto, Mundell afirma: “Para mim, o grumete está, como diríamos hoje em dia, ‘fechando'”.