Do retorno histórico às teses de defesa e oposição à escravidão indígena no Brasil colonial à crise contemporânea da democracia. A discussão sobre esses temas marcou as cinco palestras na última mesa do colóquio “democracia como valor universal: 40 anos de batalhas de ideias”, na quinta-feira, 04 de abril.
Na primeira fala da mesa, Alfredo Storck, doutor em filosofia medieval pela Universidade de Tours, França, e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), faz uma revisita ao Brasil do século XVI, quando a noção de liberdade foi alvo de um forte debate, ocorrido na Bahia em 1566, na presença do Governador-Geral, Mem de Sá, do Bispo Pedro Leitão, do Provedor-Mor Braz Fragoso, e do provincial Luís Grã.
Para estabelecer uma nova legislação escravocrata indígena, dois membros da Ordem Jesuíta, Quirício Caxa (1538-1599) e Manuel da Nóbrega (1517-1570), ficaram em lados opostos sobre as condições e os limites da escravidão indígena. Caxa trazia o pensamento de que o homem é livre, dono da própria liberdade, por isso, poderia vender a si mesmo, logo ser escravo. Na contramão, Nóbrega afirmava que um homem nunca abriria mão de sua própria liberdade, salvo uma razão muito forte.
O debate foi motivado pelo regente do trono português, Dom Henrique, que exigiu das autoridades legais e religiosas uma política indígena para o Brasil, frente aos rumores de cativeiros injustos. No período, os títulos da escravidão reconhecidos por lei eram: ser capturado em uma guerra justa, ter pena de morte mudada para escravidão, nascer naturalmente como escravo, e a venda dos filhos ou da própria pessoa, mas apenas em casos de extrema necessidade.
Foi esse último caso o colocado em xeque. De acordo com o professor, os debates buscavam definir a valoração do que se considerava como “necessidade” perante a lei, o que encadeou discussões sobre a liberdade enquanto conceito. Para Nóbrega, o argumento de que os índios se vendiam por serem livres era uma desculpa para comercializar os índios e evitar punições. Ao seu ver, o que acontecia no Brasil não eram casos de homens vendendo a si mesmos. Esquecia-se, com a prática, o objetivo principal do projeto jesuíta da época, de conversão indígena.
Ao final, o comitê adotou a a visão de Nóbrega, o que atualizou as práticas escravocratas do período, quando “se reintroduz a noção de extrema necessidade”, afirmou Alfredo Storck.
O debate, no entanto, trouxe novas nuances apenas à escravidão indígena, já que a escravidão africana era uma prática normatizada – e que viria a ter fim apenas quatro séculos depois, em 13 de maio de 1888, conforme demonstram documentos nos quais jesuítas, apesar de questionarem a escravidão indígena, solicitavam ao império o envio de “negros da Guiné”, contou Storck.
A liberdade também foi debatida por Juliana Aggio, filósofa formada pela Universidade de São Paulo e professora da UFBA. Porém, ela utilizou como pano de fundo a modernidade. Aggio trouxe Foucault, pensador francês que reconhecia o poder como uma prática social, imersa em vários campos – casa, família, trabalho, Estado – à mesa de discussão. “A liberdade é uma contraface do poder”, observou Aggio, “e busca a não-dominação”. Por dominação, ela ressalta, entende-se a cristalização do poder.
Autora do livro “Prazer e desejo em Aristóteles”, ela trouxe o pensamento do filósofo grego e aluno de Platão para o debate. Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.) entendia que liberdade era um dilema metafísico antigo, cujo fundamento era baseado em não ser propriedade do outro, mas também em não ser escravo de si. “Não ser dominado pelas emoções”, reforçou Aggio. Para o autor, professor de Alexandre, O Grande, a liberdade podia ser defendida pela autonomia, autossuficiência e parrésia, palavra grega que significa coragem de dizer a verdade em público.
Na filosofia de Aristóteles, ser livre é fazer uso pleno da racionalidade, ser capaz de se governar, de modo a não viver uma vida em conflito. “Já o tirano exerceria uma dupla violência. Escraviza os outros ao seu capricho, mas é escravizado também pelo seu próprio prazer”, refletiu Aggio a partir do autor grego.
Genildo Ferreira, professor de Filosofia da UFBA, abordou a democracia sob o ponto de vista de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Para Rousseau, cujo pensamento foi força motriz para a Revolução Francesa (1789-1799) e para o universo conceitual da modernidade, a democracia deve partir da ideia de que todos os homens são iguais e livres. Dessa forma, ele critica toda forma de subordinação de uma pessoa a outra.
Leonardo Jorge da Hora, também professor de Filosofia da UFBA, abordou a crise contemporânea da democracia e a pós-verdade, que reforça crenças pessoais em detrimento de fatos.
Ele lembrou o julgamento de Sócrates (469-399 a.C.), que resultou na condenação à morte o filósofo grego, uma prova material do embate entre verdade racional versus política.
Ele ressaltou o cenário atual de polarização extrema e explicações simplificadas às questões sociais, ou ainda à releitura de fatos históricos não baseados em fatos, mas em opiniões. Em sua reflexão, é necessário fortalecer o viés factual dos fatos, para que a história não seja adulterada a serviço de interesses que vão na contramão da democracia.
Ele explica que a democracia por si é frágil, porém “uma fragilidade boa. Pode ser questionada, repensada. No entanto, essa fragilidade também representa perigo”.
O auditório do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH), na Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da UFBA, foi o palco do encontro. Daniel Peres, que defendeu seu memorial para progressão a professor titular em 01 de abril, mediou a mesa-redonda, que rendeu um forte debate entre palestrantes e o público que assistiu ao colóquio.