Isto não é apenas um texto. É uma rede, formada por nós – pontinhos que correspondem a cada uma das palavras que você está lendo agora – e arestas – as ligações entre elas, no caso, as regras gramaticais que as conectam – e que pode ser descrita por uma equação matemática. Assim é como os físicos que estudam as chamadas “redes complexas” enxergam este texto.
Não somente este texto: é assim que esse ramo da física enxerga praticamente o mundo inteiro. Interações sociais virtuais, neurônios do córtex cerebral, informações dispersas pela internet, a difusão de vírus (cibernéticos ou biológicos), moléculas de DNA do genoma humano, textos escritos pela humanidade ao longo de séculos e até mesmo todas as mais de 7 bilhões de pessoas dispersas pelo globo terrestre: os físicos vêm cada um desses conjuntos como redes, e acreditam que a estrutura, a dinâmica e a expansão de cada uma delas possam ser descritas por modelos matemáticos que, embora bastante complexos, baseiam-se em premissas razoavelmente simples.
Em ascensão desde o final dos anos 1990, a partir da popularização da internet e do avanço das tecnologias de processamento de grandes volumes de dados (o chamado boom dos “big data”), a pesquisa ligada às redes complexas tem tido um crescimento exponencial no mundo nos últimos anos. E uma das molas-mestras desse crescimento, no âmbito da física, foi o livro “Evolution of Networks”, de Sergei Dorogovstev e José Mendes, publicado em 2003 pela editora Oxford, que tem nada menos do que 6.726 citações no Google Acadêmico (uma das plataformas de medição de impacto de artigos científicos), somadas suas duas versões. Isso, pelo menos, até ontem.
Pois um dos autores desse livro seminal, o físico português da Universidade de Aveiro José Mendes, cuja obra aparece citada em impressionantes 18.450 outros trabalhos do mundo todo (que, por sinal, formam eles mesmos uma rede complexa), estará em Salvador entre 03 e 09 de maio, a convite do do Laboratório de Física Computacional (Fesc) do Instituto de Física (IF) da UFBA e do INCT em Estudos Interdisciplinares em Ecologia e Evolução (IN-Tree). Na Universidade, ele fará duas atividades: uma conferência aberta ao público para explicar, em linguagem acessível a nós, leigos, as “Propriedades estruturais de redes complexas”, no dia 06, segunda-feira, no auditório do Instituto de Matemática; e uma oficina de “Introdução à teoria das redes complexas”, para professores, estudantes e pesquisadores, nos dias 07 e 09, pela manhã, no auditório A do Instituto de Geociências.
Não é demais afirmar que praticamente qualquer pessoa que resolva começar a estudar redes complexas terá que ler pelo menos um dos muitos trabalhos de José Mendes. O físico apostou no estudo das redes no final dos anos 1990, e foi um dos pesquisadores que as trouxe da matemática para a física. Até então, a teoria das redes era limitada às redes aleatórias, em geral abstratas e bem menos complexas do que as redes reais, como a internet (que liga os computadores) e a WWW (world wide web, que interliga as páginas virtuais).
Segundo o professor do IF Massimo Ostilli, que foi seu aluno de pós-doutorado entre 2005 e 2010, Mendes “intuiu” que a internet e os novos computadores promoveriam, rapidamente, uma revolução no pensamento sobre redes, já que, pela primeira vez, seria possível processar e analisar o comportamento de gigantescas massas de dados. Formou, então, a partir da Universidade do Porto, um grupo de pesquisa multidisciplinar e internacional, que abrigou bons cientistas russos em diáspora após o fim da União Soviética – entre eles, Dorogovstev – , e que, a partir dos anos 2000, “fecundou” o campo, abordando os modelos que supostamente reproduziam redes reais e utilizando novos recursos da matemática para resolvê-los, e também para postular e propor novos modelos. Italiano de Roma, o professor Ostilli foi um dos jovens estudantes atraído pelo grupo, já então transferido para a Universidade de Aveiro, da qual Mendes se tornaria vice-reitor, cargo que ocupa atualmente.
“Os físicos são um pouco como crianças curiosas, que gostam de brinquedos novos. As redes complexas são um desses grandes brinquedos no momento, no mundo da física”, brinca Ostilli. Ele explica que, para além da ideia de redes, o que chama atenção é o adjetivo complexas, que remete tanto ao seu crescimento progressivo ao longo do tempo (por adição de novos nós e arestas) quanto à disposição aparentemente caótica das conexões, que não é nem regular (como seria, por exemplo, uma rede quadrada de linhas perpendiculares), nem totalmente aleatória (como as redes abstratas que os matemáticos cogitavam).
Dessa complexidade toda, contudo, emergem dois princípios chave relativamente simples, encontrados em todas as redes desse tipo: o “power law” (lei de potência), que prevê a existência de nós com uma gigantesca quantidade de ligações, que alcançam mesmo os pontos mais remotos; e o “small world” (mundo pequeno), que estabelece que qualquer nó, por menos ligações que tenha, estará ligado à rede. Sim, são os teóricos das redes complexas que garantem que qualquer pessoa no mundo está a algo entre sete e nove pessoas de distância de qualquer outra pessoa no mundo.
“Somos muito mais conectados do que pensamos”, resume Ostilli. A física das redes complexas é uma “nova disciplina” que, ele diz, tem algo a contribuir com os estudos dos mais diversos domínios, do econômico ao biológico, do computacional ao neurolinguístico. Exemplo simples do alcance irrestrito da física das redes complexas aparece, segundo Ostilli, em um outro trabalho de Mendes e Dorogovstev, sobre as conexões formadas pelas palavras de textos escritos ao longo da história humana. “Esse trabalho postula que, se analisarmos estatisticamente todas as palavras presentes em grandes volumes de textos ao longo do tempo, vamos encontrar dois grandes grupos: as que permanecem, responsáveis pelo sentido de ideias bem estabelecidas na gramática da linguagem, e as que variam, porque estão mais suscetíveis às transformações que as línguas sofrem ao longo do tempo”.
Tudo isso pode, num primeiro momento, não ter o menor significado para o público leigo. Pode interessar remotamente a quem tem curiosidade por ciência, por tecnologia da informação, por economia, ou mesmo pela relação entre resultados eleitorais e a hiperconectividade proporcionada pelos aplicativos e dispositivos móveis. Pode representar, para pesquisadores de quase todas as áreas do conhecimento, uma importante ferramenta de sistematização e análise de dados. Para os físicos, no entanto, ver e descrever redes em toda parte faz tanto sentido, que chega a lhes tocar o coração: “A física emociona”, diz Ostilli.