
Eventos reuniram lideranças indígenas e quilombolas em mesa-redonda no Teatro Experimental na Escola de Dança da UFBA
Estudantes, ativistas, teóricos, artistas, educadores, mestres e mestras das culturas populares e cidadãos das comunidades tradicionais contribuíram com os debates promovidos pelo VI Congresso Brasileiro de Filosofia da Libertação e III Encontro Internacional de Filosofia Africana, entre os dias 01 e 04 de outubro. Com o tema “Corpo, Ancestralidade e Libertação”, os eventos foram uma oportunidade para refletir e problematizar estruturas sociais e propor soluções para os problemas diagnosticados, abordando assuntos como decolonialidade, subalternidade, interculturalidade, feminismo negro, diáspora e história da África.
Promovida pelo grupo de pesquisa Rede Africanidades, da Faculdade de Educação da UFBA, a programação incluiu oficinas, minicursos, mesas-redondas, comunicações e conferências. Foi também espaço para a socialização de pesquisas, inclusive de trabalhos envolvendo corporeidade, produções culturais e iniciativas educacionais no âmbito de comunidades tradicionais, com intercâmbio e difusão de saberes e experiências, e de resistência aos processos conservadores, intolerantes, discriminatórios e de desmonte dos direitos e conquistas sociais, presentes no atual contexto político brasileiro internacional.
Uma das mesas redondas realizadas, no dia 03 de outubro, teve como tema “Interculturalidade e Movimento Social Popular”, com as participações de Neuza Vaz, da Associação Sul Americana de Filosofia e Teologia Interculturais (Asafti/RS); Sueli Maxakali, representante da Associação Maxakali de Aldeia Verde/MG; e Nêgo Bispo, do Quilombo do Saco-Curtume/PI. O evento, que teve a mediação do professor Domingos dos Santos (PUC/GO), aconteceu no Teatro Experimental, na Escola de Dança, no campus de Ondina.
Sueli Maxakali, educadora e liderança indígena da Associação Maxakali de Aldeia Verde/MG, defendeu o respeito às diferentes culturas e destacou a importância de os indígenas conquistarem espaços nas cidades e nas aldeias, apontando como caminho a valorização da educação. Para isso, no entanto, avalia que será preciso mobilização popular e atuação dos movimentos sociais para enfrentar as muitas dificuldades no cenário político atual, a exemplo dos cortes de recursos para as universidades federais.
Ela apresentou relato sobre a situação das escolas indígenas na sua região, que sofrem com o corte de recursos para financiar itens básicos como material escolar. Também denunciou a crescente violência contra os povos indígenas em todo o país e ressaltou a importância da luta pela terra. “Cada vez está mais difícil para nós, indígenas”. “Estão nos matando”, explicitou a liderança sobre a situação enfrentada.
Sueli ressaltou a força da sua cultura, a proteção dos espíritos e dos antepassados, e apresentou ao público um dos cantos do seu povo para enfrentar os colonizadores em suas ações de desmatamento. Por fim, reivindicou respeito às terras indígenas, às tradições e ao ensino que acontece nas aldeias muito além das salas de aula, com o investimento em conhecimentos múltiplos, como, por exemplo, sobre os usos das plantas medicinais.

A programação dos eventos contou com diversas oficinas de corporeidade, uma das quais sobre capoeira Angola
Na sequência, o ativista político e representante de movimentos de luta pela terra, Nêgo Bispo, do Quilombo do Saco-Curtume/PI, lembrou do tempo em que no Brasil os quilombos e os seus povos eram considerados organizações criminosas e que expressões populares como a capoeira e o samba eram criminalizadas.
Ele condenou uma visão colonialista que perdura no pensamento nacional produzido institucionalmente até os dias de hoje, questionando, inclusive, a laicidade do Estado. Exigiu reconhecimento aos povos quilombolas, aos seus direitos e às suas tradições. “Os quilombos têm organização própria que deve ser respeitada”, disse.
Bispo deu como exemplo histórico de violência estatal o massacre de Caldeirão de Santa Cruz, no Ceará, nos anos 1930, quando o governo de Getúlio Vargas exterminou centenas de pessoas da comunidade que foi acusada de promover o comunismo. E disse que essas violências continuam acontecendo hoje contra populações marginalizadas. Sobre a sua experiência pessoal, disse ter encontrado dificuldade de encaminhar questões quilombolas em partidos políticos e sindicatos nos anos 1990, e que encontrou nos movimentos sociais a forma de expressar essas demandas e pressionar por mudanças.
Outra participante da mesa, a professora Neuza Vaz (Asafti/RS) refletiu sobre a interculturalidade como um exercício que está muito além da simples convivência entre as culturas diversas. “A interculturalidade pode ser vista como uma postura que abre o ser humano a uma cultura diferente e ao processo de reaprendizagem”, diz a professora, que acrescenta: “Não basta uma única cultura para compreender o mundo”.
Neuza destacou que sua fala se daria a partir de um lugar de referência, a sua experiência como educadora, especialmente na área da filosofia. Para ela, o reconhecimento às culturas humanas demanda uma atitude comprometida com o outro que é distinto de si próprio, com respeito às identidades e preservação das singularidades étnicas.
“Necessitamos reconstruir a nossa própria racionalidade e as nossas certezas”, disse a professora, ressaltando que a filosofia está além da produção intelectual e envolve um conjunto de manifestações simbólicas que expressam diferentes formas da razão humana, incluindo a dança e as artes. Ela também falou sobre a necessidade de democratizar os avanços tecnológicos e científicos e assegurar os seus usos de forma consciente e livre por todos.

Rede Africanidades, da Faculdade de Educação da UFBA, promoveu o congresso brasileiro e o encontro internacional entre os dias 1º e 4 de outubro
Neuza Vaz criticou uma visão hegemônica da razão ocidental, que não favorece o diálogo com outras culturas, e uma lógica que reduz tudo a mercadoria e estimula a competitividade e a luta pelo poder. Disse considerar que é preciso atender aos diferentes povos e suas maneiras de pensar e estar no mundo, com a valorização elementos como a oralidade presente nas culturas e filosofias populares.
A programação do congresso brasileiro e do encontro internacional contou com oficinas de corporeidade sobre capoeira Angola, com mestre Cobra Mansa, Sinapse Matumbu, com mestre Joab Jó Malungo Jundiá, e ARA-OKÔ: a caboclagem encantada no corpo-brincante, com Lau Santos e Amélia Conrado, além de mostra de filmes latino-americanos e muitas atividades artísticas.
Filosofia Latino-Americana, Filosofia Africana e Filosofia da Libertação, temas centrais dos eventos realizados, fazem parte dos movimentos de defesa dos direitos humanos e críticos às construções ideológicas que sustentam sistemas produtores de vítimas e oprimidos. A iniciativa dos eventos é uma forma de estimular o diálogo entre os saberes acadêmicos e populares/tradicionais e promover a diversidade cultural.