Vivaldo Moura Neto, Doutor Honoris Causa pela UFBA: “A glia é mais importante do que o neurônio”

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Não só de neurônios é feito um cérebro. Preenchendo os espaços entre um neurônio e outro, existem células de diversos tipos chamadas glias. Há pouco mais de 30 anos, os cientistas se importavam menos com elas: pensava-se que servissem somente para sustentar e levar oxigênio e nutrientes ao cérebro, nada mais. Até que, nos anos 80, pesquisadores de diversas partes do mundo descobriram que, além de sustentar e nutrir o cérebro, as glias também podem, em certas situações, transformar-se em neurônios, pois possuem propriedades das chamadas células-tronco (células “originais”, não diferenciadas, que conservam a capacidade de assumir as propriedades de outras células do organismo). “Nisso, eu tive uma participação de que gosto muito”, afirma, orgulhoso, o professor Vivaldo Moura Neto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), homenageado pela UFBA com o título de Doutor Honoris Causa na quarta-feira, 8, na reitoria. “A glia é uma célula mais importante do que o neurônio, porque pode virar neurônio se for preciso”, resume.

A honraria celebra uma trajetória de 43 anos dedicados à pesquisa na área de ciências biológicas, na qual integrou-se a redes internacionais de cooperação acadêmica e, consequentemente, promoveu a integração de pesquisadores e universidades brasileiras a essas redes. Seu relacionamento com a UFBA remonta a 1986, e foi fundamental para abrir ao Laboratório de Neuroquímica do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) as portas para a participação em redes nacionais – como a Rede Glial/INCT de Neurociência Translacional/CNPq – e internacionais – como a Rede Glial Iberoamericana (RGIA) e a Rede Glial Luso-Brasileira. [Veja mais aqui]. Seu mais recente projeto envolve estudar a biologia celular e molecular dos gliomas humanos, tumores do sistema nervoso central, para melhor diagnóstico e tratamento.

Talvez a exaustiva lista de siglas e nomes no currículo Lattes do professor Vivaldo – que computa 112 artigos em revistas científicas, 20 dissertações e 23 teses orientadas, entre outras produções – possa ser resumida em uma frase, dita na solenidade de entrega do título, pela pesquisadora do ICS e da Rede Glial Maria de Fátima Dias Costa: “a verdadeira cooperação científica é uma cooperação entre pessoas”.

Antes da cerimônia, o professor Vivaldo Moura Neto conversou com o Edgardigital:

Os gliomas respondem por uma parte significativa dos tumores cerebrais. Tendo em vista as pesquisas que o senhor coordenou ou das quais fez parte, o que pode ser dito hoje sobre a origem, o desenvolvimento e o tratamento desses tumores?

Os gliomas são os tumores do cérebro mais numerosos, e de uma variedade muito grande de tipos. O mais grave deles se chama glioblastoma, que se localiza às vezes frontalmente, às vezes lateralmente. Quando diagnosticado, o tratamento indicado é a cirurgia, seguida de tratamento radioterápico e quimoterápico. Quando você remove o tumor e faz esse tipo de tratamento, o paciente tem, no máximo, um ano de vida mais. Quando o tumor reaparece, é mais agressivo ainda: se difunde pelo cérebro, se distribui muitas vezes em locais vitais, e o indivíduo morre. Quais são as medidas que se usam hoje, alternativamente, para tentar dominar esse tumor? A primeira é tentar descobrir novas drogas, moléculas farmacológicas, que você encontra, por exemplo, na natureza, na flora. É o que faz aqui o pessoal do ICS/UFBA, com a flora baiana, obtendo dali moléculas da família dos flavonóides, que estão presentes em tudo quanto é parte da natureza – representam o flavor, o perfume. Alguns desses flavonóides, quimicamente, são eficazes contra o tumor.

Hoje, o que nós fazemos, no Rio, ainda em ensaios in vitro, é usar duas drogas ao mesmo tempo: a temosolomida, que hoje é a droga “standard” que os médicos usam no tratamento, e junto com ela uma segunda droga, uma molécula que facilita a entrada dessa primeira na célula. Há alguns resultados interessantes quando você usa as duas drogas, é melhor do que quando se usa uma só. Mas há um problema: mesmo a melhor das drogas não consegue matar o tumor totalmente. Há sempre um conteúdo celular que resta, que é capaz de fazer o tumor reaparecer. Hoje, nós sabemos que essas células são as chamadas células-tronco do tumor – da mesma natureza das que existem no nosso cérebro e outras partes do nosso corpo, que servem para renovar o conteúdo celular. O tumor também surge a partir de células-tronco, que são dificílimas de eliminar, mesmo com essas drogas. Uma tentativa seria tentar fazer elas se diferenciarem [em células não cancerígenas]. Isso já se faz in vitro, mas você não consegue fazer isso dentro da cabeça do paciente, porque tem que romper a caixa craniana, invadir o cérebro… esse é um grande problema para os tumores cerebrais. Há outros tumores que, se diagnosticados a tempo (de mama, de pulmão, de próstata etc.),  são mais fáceis [de eliminar], porque a invasão de uma cirurgia é menos grave do que a que ocorre no cérebro.

Como avalia o avanço do conhecimento sobre doenças relacionadas ao sistema nervoso desde quando o senhor começou a pesquisar nessa área, nos anos 80?

O fato de conhecer-se mais sobre as células-tronco foi um grande avanço, não há dúvida, porque, agora, todo o trabalho se volta para cima delas, sobre a possibilidade de se modificar essas células. Hoje se começa a ver como essas células podem resistir às drogas, aos fármacos. Naturalmente, o primeiro ensaio é sempre in vitro, no laboratório. Só depois de ter a certeza que você vai fazer ensaios em animais. E só quando tiver certeza do sucesso é que você vai tentar fazer um ensaio clínico em humanos.

Há funções cerebrais diretamente ligadas às células gliais, como os astrócitos [células cerebrais em formato de estrela, entre os neurônios]? É verdade que eles têm a ver com o pensamento e a aprendizagem, como que “complementando” as funções dos neurônios?

É isso mesmo. Essas células, os astrócitos, foram caracterizadas pela primeira vez por Santiago Ramón y Cajal, um espanhol que ganhou o prêmio Nobel em 1906, com uma obra [sobre a estrutura do sistema nervoso] que mostrou as células gliais. O nome glial vem de cola, [como no inglês “glue”], porque o primeiro a descrever uma célula glial foi um alemão que, olhando um tumor no cérebro, viu aquela massa e achou que era uma cola celular, que servia de suporte para os neurônios. E, durante um bom tempo, se descreveu essas células como sendo células que serviam de suporte para os neurônios.

Nos anos de 1980, quando fiz meu doutorado no Collège de France, em Paris, meu trabalho foi justamente entender a relação entre a célula glial e o neurônio. Pude participar de um grupo de estudiosos do mundo todo sobre a glia, para mostrar que as células gliais são tão, ou mais importantes do que o neurônio do que a gente podia imaginar. Porque há situações em que as células gliais podem se transformar em neurônios se for preciso. Existe um caso natural, em que isso ocorre normalmente, dentro do cérebro do indivíduo ao longo do seu desenvolvimento. Esses neurônios migram até a sua região de instalação, passando pela célula glial, fazendo uma haste que a envolve. Quando o neurônio chega no ápice do córtex do cérebro, essa célula glial recolhe esse seu prolongamento e se diferencia em neurônio, ou então se diferencia em um astrócito muito ativo.

As células gliais são capazes de fazer praticamente tudo que um neurônio faz, claro que com pequenas exceções – evidentemente que sem as interações neuronais, que são interações fundamentais para o comando da inteligência. Mas, para que um neurônio se encontre com outro e faça uma conexão, é preciso que a célula glial esteja ali, porque é ela quem consolida essa ligação. Se ela não estiver, a interação é pobre.

Essa diferenciação se dá só em situações excepcionais, como traumas ou cirurgias, ou pode acontecer em situações normais?

O cérebro é quem determina a situação.

Mas, normalmente, pode ser que o cérebro de uma pessoa esteja fazendo novas conexões e que essas células estejam se diferenciando…

Ah, seguramente. Elas servem para isso. Nós ainda conhecemos pouco das células gliais. De 1980, quando se achava que a célula glial não era lá tão importante, para os dias de hoje, se avançou muito, mas ainda se conhece pouco. E Cajal foi realmente o grande gênio dessa história, porque ele descreveu boa parte disso que estou lhe falando agora em 1906. E com um detalhe: naquela época, ele não dispunha dos recursos tecnológicos e metodológicos de que dispomos hoje. Então, quando ele não sabia demonstrar um evento, ou não podia, por conta das limitações da época, ele dizia: “mas isso deve ser assim, assim e assim”.

O senhor faz parte de diversas redes de cooperação nacional internacional. Quais as principais delas? Quando começou a se relacionar com a UFBA?

Tem o projeto de cooperação França-Brasil, o mais sólido deles, de muitos anos, no qual os colegas aqui da Bahia – Silvia [Lima Costa, do ICS e Rede Glial], Maria de Fátima [Dias Costa, também do ICS e Rede Glial] e os alunos delas – entraram também, porque chegou um momento em que a gente precisava fazer uma coisa mais tripartite, tetrapartite. A segunda colaboração internacional que eu tenho é com Portugal, com a professora Celeste Lopes, da Universidade de Coimbra, que aprecio muito pelo brilho científico dos portugueses. A outra é com o Instituto Nacional de Biologia da Eslovênia. Nacionalmente, tenho uma colaboração forte aqui com a Bahia: são 30 anos, desde 1986 que eu colaboro com o ICS, e o ICS comigo. Também mantenho uma colaboração forte com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a faculdade de medicina da Federal do Ceará – através da professora Gerly Brito, que também tem colaboração aqui com a Bahia –, com a Federal de Pernambuco. E uma colaboração que vem crescendo com a Federal de Alagoas e a Federal do Piauí.

Nos próximos anos, em que pretende trabalhar?

Nós estamos estudando o sistema nervoso entérico. O que é o sistema nervoso entérico? É o sistema nervoso que controla o intestino. Ele é conhecido na literatura como o “segundo cérebro”. Esse sistema nervoso entérico tem total independência do cérebro para funcionar. Nele, existe uma célula glial, a glia entérica, que nós estamos estudando e mostrando que é possível que essas células gliais que aparecem ali estejam em estado de células tronco perene, mesmo no indivíduo adulto.

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