José Miguel Wisnik: “Fake news implodem ostensivamente o princípio da responsabilidade”

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Em sua participação no Congresso Virtual UFBA 2020, o professor José Miguel Wisnik (USP) abordou o tema “Literatura, fake news e ativismos identitários”, em videoconferência com o vice-reitor da UFBA, Paulo Miguez, na sexta-feira, 22 de maio.

Wisnik observa uma progressiva erosão da linha que separa ficção e realidade. Explicou que a obra de ficção opera com a imaginação, embora também se relacione com a realidade, enquanto que relatos factuais, reportagens, testemunhos, biografias estão comprometidos com referenciais que podem ser verificados, fatos que estão abertos a serem questionados e à checagem pública – ainda que também possam ter cortes e recortes que lhes conferem algo de ficcional. Ressaltou ainda a importância da checagem das informações que é própria do jornalismo.

Para Wisnik, a ficção invadiu a realidade, com a produção instantânea de versões do real para produzir efeitos em determinado contexto. O professor falou sobre o mundo da chamada ‘pós-verdade’, as disputas de narrativas e as fake news, que apelam às emoções e crenças pessoais, em prejuízo dos fatos objetivos. As fake news, a que se referiu como “notícias fraudulentas”, surgem como uma forma de ficção camuflada, e visam atingir impulsos, nervos, provocar comportamentos reativos nas pessoas. Através de uma engenharia que se utiliza de logaritmos para atuar nas redes sociais, ações são direcionadas a grupos específicos e para influenciar opinião pública. Assim, a realidade torna-se uma construção fictícia, muitas vezes com objetivos políticos.

“Fake news são tiros dirigidos para alvos (…) São tiros de ficção, mas não são tiros de festim, pois visam efeitos de real e fazem parte inseparável de uma cultura da violência, em um mundo arquitetado com armas e balas”, afirmou Wisnik, citando o caso de Marielle Franco, que após a sua morte física, teve a sua memória atacada com notícias falsas. Com uma intencionalidade violenta, os outros passam a ser alvejados.

“As fake news implodem ostensivamente o princípio da responsabilidade”, disse Wisnik, que observa a alegação de provas que nunca são apresentadas e a falta de responsabilidade por aquilo o que se diz e o que se faz. “Cada hora se diz uma coisa”, constatou sobre o comportamento de propagadores de fake news. Embora reconheça que essas notícias possam ser provenientes de espectros políticos da direita e da esquerda, afirmou que é a extrema-direita quem tem se utilizado dessa produção sistemática de fake news em todo o mundo para projetar um inimigo imaginário, colocando as pessoas umas contra as outras.

Não por acaso, esses grupos elegem como seus inimigos as artes, a ciência e a cultura, que representam possibilidades de se colocar no lugar do outro. Na literatura, explica o professor, é permitido um jogo que embaralha pessoas pronominais. “O ´eu´ na ficção já se projeta no outro. Há uma possibilidade de eu ser o outro”, considera. Esse intercâmbio de pessoas permite a experiência de se colocar no lugar do outro, estabelecendo um pacto normativo que dá acesso a outras dimensões, “por um momento se esquece de si e se coloca na pele do outro”. “A coisa não teria graça se não fosse assim”, disse Wisnik. A ficção tanto cria uma ilusão “que permite ampliar mundos”, quanto a desilusão com mundos “que se apresentam diferentes do que se imagina, do que se quer”, avalia o professor.

As notícias fraudulentas estão programadas por uma engenharia que desperta os medos das pessoas, provocam uma negação da realidade e impedem de ver o outro. A insensibilidade total à dor do outro seria um mergulho na psicopatia, disse ele. Para Wisnik, esses métodos foram adotados para influenciar nos resultados das eleições presidenciais de 2018 no Brasil.

Diante desse cenário, o pesquisador ressaltou a importância da cultura brasileira e da emergência das marchas de grupos identitários, dos movimentos negros, de mulheres, LGBT, entre outros, que expressam a sua condição e falam a partir de sua experiência própria, sem mediadores, reivindicando o direito à representatividade. Também celebrou a capacidade de articulação da população nas periferias, e a sua expressão nas artes, citando Racionais MC, com o disco “Sobrevivendo no inferno”, que constitui um novo sentido à ideia de periferia, ressaltando a sua potência, opondo-se à lógica genocida do Estado.

A atual crise política no Brasil, os ataques às instituições democráticas e o enfrentamento à pandemia de Covid-19 foram destacados por Miguez como importantes temas de debates realizados durante o Congresso. “O Congresso marca um momento de resistência na universidade”, afirmou, ao abrir a atividade. Durante a transmissão do evento, o vice-reitor destacou as contribuições das universidades públicas neste momento com a produção de conhecimento e a solidariedade. “A nossa casa é um projeto de futuro. Pensamos um futuro que produza menos desigualdades sociais e mais acolhimento”. Também chamou a atenção para a importância do Sistema Único de Saúde e desejou: “Vida longa ao SUS”.

 

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