
Atividade do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap) em passeata pela rua principal do Alto das Pombas no dia 15 de dezembro de 2018, com participação do AbraSUS
Demandas de saúde da comunidade do Alto das Pombas, oriundas das desigualdades e injustiças sociais, da ausência de políticas públicas, da carência em infraestrutura, do machismo e racismo, estão presentes no livro “Entre Olhares e Vivências no Alto das Pombas”, publicado recentemente pela Edufba, que relata a experiência de 32 anos de atividades de extensão, ensino e pesquisa da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) com a comunidade. O livro foi escrito por 44 autores, entre eles alunos e professores da unidade de ensino, moradores e lideranças importantes da comunidade.
Organizador do livro e professor do departamento de Medicina Preventiva e Social da FMB, Eduardo Reis destaca a proximidade física da universidade com o Alto das Pombas e o convívio intenso com os moradores do bairro, comunidade marcada pela resistência, mobilizações, lutas sociais e muita organização coletiva. A participação popular com autonomia, diversidade cultural, respeito e ética são premissas de todas as ações desenvolvidas, afirma ele, que coordena o projeto ao lado do professor Ronaldo Jacobina e dos estudantes Felipe Barbosa Araújo, Jarbas Mota e Marina Mucci.
A medicina preventiva e social tem uma visão multifocal dos determinantes em saúde, levando em consideração, entre outros fatores, as condições econômicas, de saneamento básico, posse do espaço, conforme explica o professor. “A gente já vai com essa visão mais ampla. Isso ajuda bastante no diálogo”. O processo envolve a aproximação da comunidade para compreender as suas principais demandas e fazer encaminhamentos. O reconhecimento do território torna possível compreender um pouco mais sobre esses moradores, suas histórias, vivências, singularidades e experiências de vida.
O livro traz o testemunho de enfermeiras que atuam diretamente na comunidade, e também do padre, da mãe de santo, entre outras lideranças. As ações se realizam em parceria com entidades do bairro, como o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), o Instituto Fatumbi, a Paróquia da Igreja Católica no bairro e o Cemitério Campo Santo, e lideranças do candomblé em exercício na comunidade. O protagonismo dos estudantes é incentivado na coordenação de ações e projetos, conforme ressalta Reis, que cita ainda uma série de iniciativas que acontecem paralelamente na comunidade promovidas em áreas como fonoaudiologia, odontologia, história, entre outras.
“Não se trata, entretanto, de uma relação unilateral, em que a universidade tenta preencher lacunas ou suprir necessidades. Bem ao contrário, estamos diante de uma rica troca de experiências, saberes e posicionamentos, que fortalece ambos os lados. Ao final, universidade e comunidade se confundem e se completam”, afirma o professor Luís Fernando Fernandes Adan, diretor da FMB, no prefácio do livro.
O projeto nasceu a partir da demanda de uma liderança comunitária do Alto Das Pombas, Dona Zildete, então presidente da Associação Beneficente e Recreativa São Salvador do Alto das Pombas, que solicitou ao professor Ronaldo Jacobina uma palestra na comunidade tendo a saúde como tema de análise. A apresentação foi “A situação de saúde no Brasil, na Bahia e em Salvador”, na qual uma exposição e um debate foram promovidos pela associação de moradores e pelo Grumap em 30 de julho de 1988. Esse convite, foi o início do projeto.

Visão panorâmica da comunidade do Alto das Pombas
Ao longo desses anos, experiências de ensino e extensão na comunidade do Alto das Pombas, desenvolvidas em turmas diversas de componentes obrigatórios e optativos do curso de Medicina da FMB, são frentes de atuação junto à população. A obra destaca a realização das feiras de saúde na comunidade, com ênfase não só às doenças infecciosas e parasitárias e à importância da vacinação de crianças e de adultos, mas também a doenças crônicas e degenerativas, com prioridade para a Hipertensão Arterial (HA) e diabetes.
O Programa de Educação e Controle da Hipertensão Arterial implementado junto à comunidade promoveu uma série de práticas voltadas à prevenção desses enfermidades e suas complicações, envolvendo visitas domiciliares e atividades coletivas, com utilização de recursos pedagógicos diversificados para motivar a população; detecção precoce e encaminhamento de hipertensos ao serviço de saúde; ações educativas dirigidas ao controle dos fatores de risco; medidas de prevenção secundária para os hipertensos; reorganização da assistência para conferir maior resolutividade ao enfrentamento do problema; encaminhamento a serviço especializado, se necessário.
Pessoas-chave e plantas medicinais
Segundo Reis, os saberes científicos e populares dialogam a todo o momento na construção do conhecimento. Nesse processo, teve origem um trabalho sobre o uso de plantas medicinais em parceria com comunidade, que contou com levantamentos dos locais de plantios, identificação de pessoas-chave com conhecimentos e lideranças, realização de oficinas na igreja católica e reuniões nos terreiros de candomblé, realização de vídeo, folder etc.
Nos diálogos junto aos moradores, foram catalogadas 52 plantas medicinais utilizadas pela comunidade. Durante as andanças dos estudantes no bairro, ficou perceptível, com importante frequência, que o uso das plantas medicinais se dava de forma equivocada, o que poderia impactar negativamente na saúde dos usuários. Assim, foi realizada uma oficina de capacitação dos alunos para detectarem possíveis erros no uso e manejo de plantas medicinais, com especialista em plantas medicinais e fitoterápicos da Secretária de Saúde do Estado da Bahia, seguida de conversa para ajudar a propagar os saberes sobre as plantas medicinais. Cartilhas educativas sobre o uso de plantas medicinais que auxiliam nos casos de hipertensão e diabetes foram produzidas, com sugestões de plantas para o tratamento das duas doenças citadas, dicas de como preparar chás por difusão e por decocção e cuidados básicos sobre o manejo e uso de plantas medicinais.
Problemas identificados e priorizados pela população em de três décadas de atuação demandaram práticas educativas sobre dengue, DSTs, saúde da mulher, saúde das empregadas domésticas, práticas de primeiros socorros, saúde dos olhos em escolares, saúde de idosos, entre muitos outros temas. Nesse processo, foram utilizados recursos pedagógicos diversificados de acordo com a temática e o público-alvo, como dramatização, jogos, brincadeiras educativas, feiras e oficinas de saúde, apresentações áudio-visuais, gincana, dramatização, materiais visuais, músicas, jogos, história em quadrinhos, etc.
O Internato em Medicina Social da FMB, implantado em 2002, optou por desenvolver seu treinamento supervisionado em serviços de saúde em unidades do PSF, posteriormente adotado como estratégia prioritária para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) em nível municipal. Docentes do DMPS-FMB passaram a atuar em unidades de saúde do município de Salvador, inclusive no bairro do Alto das Pombas, em alguns períodos intermitentes de 2010 a 2015.
O professor Eduardo Reis, que retornou para as suas atividades universitárias no início de 2016, após sete anos afastado do departamento, cedido para a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), criou, em parceria com estudantes, o grupo de extensão Abrace o SUS (AbraSUS), que iniciou as suas ações no primeiro semestre de 2018, abordando, entre outras questões, a prevenção do câncer de mama, depressão e saúde mental.
Em 2019, começou a ser oferecida a disciplina de extensão específica Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) MEDC89, Educação em saúde na Comunidade do Alto das Pombas, com 14 alunos, ministrada pelos professores Eduardo Reis, Ronaldo Jacobina e José Luís Moreno. ” A disciplina ajudou a haver uma maior aproximação com a comunidade e suas lideranças, com os equipamentos sociais locais, com o entendimento da realidade social e cultural”, afirmam os autores do primeiro capítulo do livro, que acrescentam: “A universidade, em especial a universidade pública, tem que ter esse compromisso com a sociedade e, existindo num país tão desigual, esse compromisso é imperativo com as comunidades que vivem em situação de exclusão social”.
O livro foi finalizado no início de 2020, portanto antes da crise sanitária provocada pela covid-19. Assim, esse não é um tema abordado. O professor conta que no ano passado foi preciso suspender a oferta de ACCS. “Não fazia sentido oferecer a disciplina sem poder ir até a comunidade”, diz sobre o período de isolamento social necessário. Foram intensificadas as ações de conscientização, confecção de folhetos e cartazes para orientação da população. Também está em andamento a análise de dados sobre mais de oito mil pacientes da Unidade de Saúde da Família que funciona na localidade, que fornecerão informações em saúde no cenário da pandemia e deverá orientar ações futuras. A investigação conta com a participação de seis estudantes bolsistas de Medicina, sob a coordenação de Reis.
No final do ano, exemplares do livro lançado foram levados pessoalmente pelo professor Reis para moradores e instituições parceiras do Alto das Pombas. De acordo com ele, outros dois livros devem ser lançados em 2021, um no próximo mês de março, sobre o AbraSUS, e um outro livro sobre a história da Medicina da Bahia, ainda sem data prevista de lançamento. Ambos com edição da EDUFBA.
A FMB segue a parceria com a comunidade investindo em ações em prol do respeito, do saber, da solidariedade e da ciência, contribuindo ainda com a introdução de ferramentas importantes para avaliação e implementação de políticas públicas e enfrentamento das questões sociais.
O livro
O livro está organizado em seis partes: a primeira parte apresenta uma linha histórica do processo de construção do vínculo da FMB, na figura do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS), com o bairro. Também realiza uma breve discussão histórica, cultural, geográfica, fundiária e arquitetônica da localidade do Alto das Pombas. Com um cunho mais reflexivo-teórico, a segunda parte apresenta discussões acerca da extensão e da educação popular em saúde. Após tais discussões, na parte seguinte, são expostas seis experiências de ensino e extensão do DMPS na comunidade do Alto das Pombas. As experiências apresentadas foram desenvolvidas em turmas diversas de componentes obrigatórios e optativos do curso de Medicina da FMB.
A quarta parte do livro expõe uma experiência de ensino e extensão do curso de Fisioterapia da UFBA. A quinta parte reúne textos que discorrem sobre os principais equipamentos sociais atuantes na localidade, desde o equipamento estatal, representado, por exemplo, pela Unidade de Saúde da Família (USF), bem como as Organizações da Sociedade Civil, como o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), o Instituto Fatumbi, a Paróquia da Igreja Católica no bairro e o Cemitério Campo Santo, fundamental na origem e história do bairro.
A última parte dá destaque aos itinerários de saúde com ênfase na cultura e tradição da comunidade do Alto das Pombas, discutindo os itinerários terapêuticos das pessoas do bairro. O capítulo final apresenta uma discussão antropológica da vida e atuação de reza e cura de uma das principais lideranças do candomblé em exercício na comunidade.