Lutas por igualdades de raça, classe, gênero e acesso à cidade marcaram a programação do Congresso

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O sociólogo Antônio Sérgio Guimarães destacou a importância da Lei de Cotas e os seus resultados visíveis no aumento da representatividade de profissionais negros

O sociólogo Antônio Sérgio Guimarães destacou a importância da Lei de Cotas e os seus resultados visíveis no aumento da representatividade de profissionais negros

“A defesa da universidade pública é central na luta antirracista. É a garantia de que a vitória conquistada em 2012 vai continuar a render frutos”, afirmou o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães, professor da Universidade de São Paulo (USP), na mesa “Racismo e Antirracismo: Avanços e Retrocessos a partir da Lei de Cotas“, em referência à Lei nº 12.711/12, que garantiu o acesso das classes populares, negros e indígenas às universidades federais brasileiras. A mesa fez parte da programação da noite de abertura do Congresso Virtual da UFBA 2021.

Também participou do debate a historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da FFCH/UFBA e presidente da comissão permanente de heterodefinição nos processos seletivos da universidade. “O racismo e a negação do racismo são os dois lados da mesma moeda”, disse Wlamyra, que acredita que essa negação é uma estratégia política para a manutenção das desigualdades. “O racismo é parte do capitalismo e é fundamental para a manutenção das desigualdades no mundo”.

O evento teve mediação do jornalista Ricardo Sangiovanni, doutor em estudos étnicos e africanos pelo Pós-Afro/Ceao e assessor de Comunicação da UFBA, que apontou o processo de deterioração da ideologia racial brasileira e a oposição entre a luta pela igualdade racial e a reação de setores reacionários que insistem em negar a existência do racismo no país.

Antônio Sérgio Guimarães destacou a importância da lei de cotas e os seus resultados visíveis no aumento da representatividade de profissionais negros e no surgimento de uma cena de intelectuais negros. De acordo Guimarães, havia a crença, por parte de alguns, que a democratização da universidade brasileira, com acesso das camadas mais populares e menos escolarizadas, seria uma ameaça aos seus padrões de qualidade. O que já foi refutado por dados apresentados pelas diversas instituições de ensino ao longo dos anos.

A lei de cotas determinou a reserva de 50% das vagas nos processos seletivos das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, com renda familiar mensal por pessoa igual ou menor a 1,5 salário mínimo, preenchidas, por  curso e  turno, por  pretos,  pardos  e  indígenas  e por pessoas com deficiência, em proporção respectiva dessas populações de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“Tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, na França e em vários outros países, há uma luta ideológica que toma conta e polariza a sociedade e ataca o coração da luta antirracista”, diz ele, que denuncia o fato de ainda ser preciso lidar com o racismo explícito.  “Ou seja, o nosso desafio hoje é enorme”, avalia.

Guimarães compreende que o antirracismo no Brasil é antes de tudo uma luta para garantir a vida e oportunidades para a população negra, e disse isso lembrando das mortes por violência policial e a ideia de que os direitos humanos beneficiam apenas quem infringe a lei. “O que é uma grande mentira”, afirmou.

O pesquisador mencionou também o processo de reconhecimento da existência do racismo no Brasil, que, segundo ele, sempre foi considerado um tema tabu. “Um fenômeno como o racismo não desaparece quando a gente denuncia que existe. É uma luta constante. É como a democracia, que a gente tem que vigiar sempre, ou como o vírus, que está sempre se transmutando”.

No seu entendimento, trata-se de um avanço o reconhecimento do problema, das suas formas de manifestação e do modo como ele está operando. Entre os retrocessos, no entanto, lamentou que a cena política brasileira tenha sido invadida pela a incivilidade e a barbárie.

Guimarães também entende como avanço o reconhecimento da constitucionalidade da heterodefinição, permitindo comissões de verificação para assegurar a efetividade da política de cotas. “As autodeclarações estão sendo amplamente questionadas”, afirmou o professor, que defende o processo de verificação presencial da autodeclaração de pessoas negras a fim de garantir os seus direitos.

“Precisamos defender a universidade e o conhecimento”, acrescentou o professor, sinalizando a demanda da sociedade por respostas rápidas e também a necessidade de investir em pesquisas e reflexões que implicam mais aprofundamento e tempo. Para ele, produzir conhecimento é finalidade da universidade e uma forma poderosa de resistência.

A Lei de Cotas (Lei nº 12.711/12) garantiu o acesso às universidades públicas brasileiras para as classes populares, estudantes com renda familiar mensal por pessoa igual ou menor a 1,5 salário mínimo, negros e indígenas.

A Lei de Cotas (Lei nº 12.711/12) garantiu o acesso às universidades públicas brasileiras para as classes populares, estudantes com renda familiar mensal por pessoa igual ou menor a 1,5 salário mínimo, negros e indígenas.

Antirracismo e anticapitalismo

A historiadora Wlamyra Albuquerque ressaltou as contribuições da historiografia para entender as questões raciais no país, apontando a construção e operacionalização das categorias de raça imbricadas sempre em projetos nacionais, de demarcação de cidadanias, disputa por privilégios e luta de classes.

No cenário atual, a professora nota uma classe trabalhadora cada vez mais sem vínculos de emprego, sem espaços de cooperação, apartada de direitos e de si mesma. E acredita que a pauta antirracista precisa estar associada à luta anticapitalista.

A historiadora observou que, na sociedade neoliberal, as pautas coletivas não são valorizadas e a atuação do movimento negro é invisibilizada na maioria das vezes. Destacou, contudo, as muitas contribuições do movimento negro e de ações como os quilombos digitais e outros espaços formativos para estudantes da periferia e de instituições como o Instituto Steve Biko, que desenvolve projetos de inclusão educacional para a comunidade negra.

"O racismo e a negação do racismo são os dois lados da mesma moeda", disse Wlamyra, que acredita que essa negação é uma estratégia política para a manutenção das desigualdades

“O racismo e a negação do racismo são os dois lados da mesma moeda”, disse a historiadora Wlamyra Albuquerque, que acredita que essa negação é uma estratégia política para a manutenção das desigualdades

Para Wlamyra, é evidente que a questão racial ganhou uma grande visibilidade nos últimos anos, ao ponto de tornar-se atração de reality shows. “Reality shows gourmetizados para que as pessoas possam se divertir com essas arenas gregas”, disse ela, citando espaços em que gladiadores se enfrentavam até a última gota de sangue.

Presidente da comissão permanente de heterodefinição nos processos seletivos da universidade, destacou o trabalho realizado em parceria com a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (Proae) para investigar denúncias e apurar fraudes nos processos seletivos tanto de estudantes, quanto de servidores técnicos e docentes, fazer valer a lei e a assegurar que a política seja aplicada a quem se destina.

Vulnerabilidade social e processos de vulneração

No segundo dia do Congresso, 23/02, a mesa “Desigualdades sociais e vulneração no Brasil: expressões atuais e resistências” contou com a presença do sociólogo Jessé Souza, professor da Universidade Federal do ABC, que em sua fala fez referência ao racismo de classe e raça no Brasil. Souza avalia que as políticas de inclusão das camadas populares sempre foram criminalizadas ao longo da história do Brasil, pois as elites econômicas não pretendem essa inclusão, que custa dinheiro, quando desejado é que o orçamento público fique ao seu dispor. Assim, promovem golpes de Estado e arranjos para manter a exploração de riquezas.

Souza lembrou o período pós-abolição com a fundação da república, o processo de industrialização no governo Getúlio Vargas e a tentativa de inclusão popular, instaurando alternativa de poder à Republica Velha, caracterizada pela manutenção de uma elite exploradora do trabalho e a falta de inclusão dos negros à sociedade. “Uma continuidade da escravidão”, considera.

Souza argumenta que se trata de um projeto político de exclusão de classe e raça, falando ainda sobre uma espécie de hierarquia moral para reconhecimento de quem é digno de direitos e cidadania. Assim, existem classes que acabam sem perspectiva de futuro e percebendo-se como se valessem menos.

A psicóloga Juliana Prates, vice-diretora do Instituto de Psicologia da UFBA, ressaltou a forma desigual como a pandemia tem afetado determinadas populações, em especial a população em situação de rua. Classificou a atual conjuntura política, social e de saúde no país como “aterrorizante”, lamentando o números de mortes por Covid-19 e a invisibilidade da população de rua.

“Algumas pessoas falam que estamos todos no mesmo barco, mas a pandemia mostrou que há enormes abismos sociais”, alertou Prates, apontando os demarcadores de classe e raça que confirmam que as principais vítimas da pandemia são pobres e negros.

As ruas são um importante termômetro das condições sociais, avaliou a pesquisadora, observando que o aumento do desemprego tem levado muitas pessoas à situação de rua. Prates citou dados de pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que atestam o aumento expressivo do número de pessoas nessa situação e comentou ainda os resultados de uma pesquisa realizada pela Universidade em parceria com a Defensoria Pública, que revelam que 88,9% da população de rua de Salvador é negra.

Na pesquisa, foram consideradas também questões de gênero que permitem afirmar que as pessoas transexuais em situação de rua estão ainda mais expostas a essa violência, afirmou a pesquisadora, que percebe no país um projeto de extermínio dessas populações. Por isso, reafirmou a importância das resistências na luta contra a barbárie. Segundo Prates, a população em situação de rua incomoda quando ocupa determinados espaços, como pontos turísticos da cidade, ou batendo nas janelas dos carros ou nas portas dos restaurantes. “A invisibilidade dessa população é desejada”.

Juliana Prates terminou a sua participação com uma homenagem a Marcus Matraga, ativista assassinado em 2016, em função de sua atividade política na mediação de conflitos de terras indígenas. Leu a poesia “Na Calçada”, em que Matraga reflete sobre a existência de uma pessoa em situação de rua.

O psiquiatra e professor Antônio Nery Filho, da Faculdade de Medicina da Bahia, foi outro nome presente ao encontro virtual. Em sua participação, compartilhou a experiência que teve no manicômio judiciário enquanto médico recém-formado nos anos 1970, relatando a falta de atenção e cuidados adequados naquele contexto para portadores de transtorno mental, pessoas que enfrentam sofrimento psíquico. Para ele, o Estado atuava como vulnerador ao produzir sofrimento nas pessoas sobre as quais tem responsabilidade.

“Vulneração é o processo de sofrimento dos vulneráveis”, explicou Nery, constatando que todos os seres vivos podem ser feridos e, portanto, em alguma medida, estão vulneráveis.

Um dos mecanismos de vulneração daqueles pacientes com quem conviveu no início de sua carreira era o tratamento farmacológico. Recorda-se o médico sobre uma farmacologia “monstruosamente construída” para afetar os sistema nervoso em uma estratégia de “domação de almas”. No seu entendimento, não havia o reconhecimento da dignidade humana. “Nem tudo o que é lícito é ético”, pondera.

Nos anos 1980, o psiquiatra defendeu a criação de dispositivos para cuidar das pessoas que saiam dos manicômios judiciais e passavam a viver nas ruas. Atuou na criação do primeiro laboratório especializado para cuidar desses pacientes, inaugurado no Centro Social Urbano de Caixa D’água, em 1985. À frente do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad), desenvolveu o programa de redução de danos e a experiência dos pontos móveis de atendimento, que mais tarde foi configurada como uma política pública denominada “consultórios de rua”, que visa a ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde através da oferta de cuidados em saúde mental, para pessoas em situação de rua em geral, pessoas com transtornos mentais e usuários de crack, álcool e outras drogas, incluindo ações de redução de danos.

“Proponho um neologismo que chamo de ‘resistação’, aquilo que pode ser uma resposta na forma de utopia em movimento”, deseja o professor em referência a necessidade de se manter em ação, na resistência contra a ignorância, o desconhecimento e a morte. Finalizou a sua fala com o pensamento de Eduardo Galeano, para quem a utopia serve para que não se deixe de caminhar.

Nery acredita que é preciso trabalhar nas ruas pela via do encontro e promover o reconhecimento da classe dos viventes na rua e suas histórias de vida. “A rua é o lugar onde os olhares se encontram e produzem efeitos. Os encontros são fundamentais”, argumentou.

O evento teve moderação da professora Jacqueline Samagaia, do Instituto de Psicologia da UFBA, que definiu o debate como uma oportunidade para pensar estratégias de combate às desigualdades sociais e discutir as diversas facetas dos processos de vulneração aos quais está submetida parte da população brasileira. Ela condenou a naturalização das desigualdades e a violência simbólica que é a invisibilização das pessoas em situação de rua.

“Nada sobre nós sem nós”

campanha transolidariedade, ação coletiva realizada no cenário de combate à Covid-19, voltado para apoio ao público, a população LGBTQI+, em particular a população de mulheres transexuais e travestis em situação de vulnerabilidade social, em situação de rua e de prostituição

Idealizada pela Universidade Federal de Juiz de Fora, a campanha transolidariedade é uma ação coletiva realizada no cenário de combate à Covid-19, voltado para apoio ao público, a população LGBTQI+, em particular a população de mulheres transexuais e travestis em situação de vulnerabilidade social, em situação de rua e de prostituição

Realizado durante os dias de congresso, o Seminário “Direitos Humanos, Saúde, Cidade e População em Situação de Rua” teve outra mesa com uma mensagem bem direta logo no seu título: “Nada sobre nós sem nós: cotidiano da rua dos/das trabalhadores/as na rua e situação de rua“. O encontro reuniu representantes do Movimento das Populações em Situação de Rua, do Fórum de Catadores e Catadoras de Material Reciclado da Bahia e do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros.

O evento teve como moderadora a professora Magali Almeida, do curso de Serviço Social da UFBA, que celebrou a possibilidade do diálogo com os vários agentes da sociedade na perspectiva de troca de saberes e construção de conhecimento. Em sua fala, reafirmou a luta pelos direitos da população em situação de rua e contra o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) e a necropolítica de Estado.

Sueli Oliveira, da coordenação nacional do Movimento das Populações em Situação de Rua, afirma que “são muitas as violações de direitos na rua”. Mencionou grandes dificuldades de acesso aos serviços de saúde para as pessoas nesta situação e a falta de preparo adequado dos profissionais para acolher as suas demandas específicas.

“É muito mais fácil para a sociedade culpar, discriminar, julgar, do que conhecer e acolher”, analisa a representante do movimento social, reivindicando que população seja sempre escutada na construção de políticas públicas. Apontou como exemplo de uma política bem sucedida os consultórios de rua e defendeu a ampliação dos consultórios para os 12 distritos de saúde na cidade de Salvador. “Foi muito cara para nós a conquista dessa política”.

Na sequência, o debate contou com as  contribuições de Annemone Santos, coordenadora do Fórum de Catadores e Catadoras de Material Reciclado da Bahia, que iniciou a sua trajetória no movimento social desde muito cedo, ainda adolescente, após morte de sua mãe, Isodélia dos Santos Nevez, principal articuladora do fórum de catadores, que faleceu no ano de 2017. Anemone, que segue à frente do trabalho coletivo por compreender a sua necessidade, citou o pensamento que mãe compartilhava com ela: “Há pessoas que amam o poder. Outras têm o poder de amar”.

Com a necessidade do isolamento social durante a pandemia, muitos catadores/as tiveram dificuldades de se manter afastados das ruas. Annemone conta que muitos ficaram sem qualquer auxílio financeiro por não terem a documentação necessária. Muitos deles também são parte da população em situação de rua, de onde também tiram o seu sustento e contribuem muito com a reciclagem e a limpeza da cidade.

“É importante falar de moradia, trabalho e saúde. É o mínimo que a pessoa tem que ter”, afirmou ela, apontando a falta de visibilidade e de políticas públicas para assegurar os direitos da população de rua, que, no seu entendimento, deve ser uma prioridade. “A gente sente dor, e quando a gente sente dor a gente quer falar”, desabafou.

Também participou do debate Dandara Felícia, articuladora da primeira movimentação de candidaturas coletivas pretas feministas na cidade de Juiz de Fora/MG, travesti e mestranda em Serviço Social, que compartilhou a suas “escrevivências”, termo utilizado por ela em referência ao trabalho de Conceição Evaristo, para contar os caminhos que percorreu e como as essas vivências marcaram a sua trajetória. Revelou que foi vítima do tráfico internacional de pessoas em 2003, aos 23 anos de idade. “A partir desse momento entrei no que a gente chama de situação de rua”, contou.

Dandara passou dois anos na Europa como trabalhadora sexual de rua. Segundo ela, a rua era o único espaço em que conseguia garantir o seu sustento para não ser morta ou espancada. Estava em um país em que eu não conhecia ninguém e seus documentos estavam na mão de outras pessoas, que sabiam quem eram seus familiares no Brasil e a ameaçavam para conseguir dinheiro através da prostituição. Ela conta que já se reconhecia enquanto travesti desde tenra idade, “aos cinco anos”, e sempre teve o medo da exclusão nas ruas.

Depois que conseguiu retornar para o Brasil, começou a pesquisar a organização do trabalho e a precariedade da vida de travestis e trabalhadoras sexuais em situação de rua na cidade de Juiz de Fora. O trabalho é realizado hoje em parceria com o professor Marco Duarte, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é servidora pública e pesquisadora do programa de pós-graduação em Serviço Social da UFJF.

A partir de suas vivências, experiências práticas e teóricas, falou sobre o desejo dessas mulheres transexuais de que não lhes seja compulsório e única possibilidade de sobrevivência o trabalho sexual. Por outro lado, reconhece a dignidade da profissão e reivindica também o direito desses corpos de estarem e organizarem seu trabalho na rua, se assim desejarem.

“Somos nós as primeiras a serem expulsas quando o centro da cidade vai ser revitalizado”, disse sobre a situação de travestis, mulheres trans e trabalhadoras sexuais em processos de gentrificação.

O evento virtual contou ainda com a participação da educadora social e integrante do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, Tiffany Odara, que é assessora parlamentar da “mandata” “Pretas por Salvador” na Câmara Municipal de Salvador. Ela tem uma atuação focada nas questões raciais, redução de danos e acolhimento de pessoas LGBTQIA+, “população que é a todo momento estigmatizada e marginalizada”, disse.

Odara ressaltou que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, que em sua maioria são trabalhadoras na rua ou estão em situação de rua. Fez referência a um apagamento sistêmico secular que resulta no abandono dessas populações. Isso ocorre, conforme ressaltou, em um sistema misógino, machista, racista, que determina que a prostituição é o único espaço possível para as mulheres trans, nas ruas, na noite, no anonimato. Defendeu que as pessoas trans possam ocupar todos os espaços e profissões.

Enquanto uma mulher trans, percebe que a sociedade vê seu corpo como marginal, dissidente. “Sou um supermercado de estigmas, as pessoas me olham e sabem que sou negra, identificam que sou uma mulher trans, uma mulher trans do candomblé”. “Foi me dito há muito tempo que eu deveria ter vergonha de mim mesma, mas entendi que deveria subverter essa lógica e afirmar quem eu sou”, acrescentou. “Gosto de afirmar quem eu sou, não tenho vergonha, não tenho porque me esconder”.

“Não ligo de ser um corpo marginal, mas preciso ter garantia de direitos”, reivindicou. “Meu corpo precisa ser assistido, precisa de saúde e educação de qualidade”, advertiu Tiffany, que observa a existência de uma necropolítica “que faz o nosso corpo tomar”. Condenou o episódio envolvendo Lorena Muniz, mulher trans que morreu após ser deixada desacordada durante um incêndio, após um procedimento estético realizado em uma clínica de São Paulo, no mês de fevereiro deste ano.

“Existe todo um contexto para que o Brasil continue sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo”, alerta, apontando a falta de ações efetivas para combater a discriminação e a violência contra corpos dissidentes, que acabam por não conseguir acessar direitos básicos. A educadora apontou a falta de acolhimento e as muitas barreiras encontradas para acessar o sistema de saúde, por exemplo.

Na parte final do debate, falou o assistente social, psicólogo e sanitarista, Marco Duarte, professor da UFJF, que atua no campo dos direitos humanos da população LGBTQIA +, antirracismo e na luta antimanicomial. Abordou em sua fala as contribuições da universidade nos diálogos estabelecidos com a sociedade através de projetos de pesquisa e extensão. “A gente também está nas ruas”, diz.

“A gente atende, a gente acolhe, está à disposição e acaba se articulando com essas populações”, afirma Duarte, ressaltando a importância do trabalho. Considera, entretanto, que ainda persiste a ausência de redes de apoio e a fragilidade de políticas públicas para essas populações.

Ele falou sobre a campanha transolidariedade, ação coletiva realizada no cenário de combate à Covid-19, voltado para a população LGBTQI+, em particular a população de mulheres transexuais e travestis em situação de vulnerabilidade social, em situação de rua e de prostituição. A campanha promovida pela Faculdade de Serviço Social da UFJF estimulou a doação de cestas básicas, mantimentos, materiais de higiene pessoal e limpeza, por parte dos moradores da cidade.

Marco Duarte comentou ainda sobre a criação do programa de extensão Centro de Referência de Promoção da Cidadania LGBTQI+ e do projeto de extensão DIVERSE – Observatório da Diversidade Sexual e de Gênero: Políticas, Direitos e Saúde LGBT, e o desenvolvimento de ações para o reconhecimento do nome social de pessoas trans e sua inclusão em postos de trabalho, entre outras.

O professor celebra as possibilidades de encontros e conversas com diferentes realidades, que, segundo ele, são um grande aprendizado para a universidade e contribuem para a construção de pontes na luta pelos direitos humanos.

Feminismos e Direitos das Mulheres

Muitas atividades e reflexões promovidas durante os dias de congresso abordaram questões relacionadas aos direitos das mulheres e às diversas pautas dos movimentos feministas. Os debates tiveram como temas: Um direito feminista e a rede de proteção à mulher como instrumentos de combate ao feminicídio ; Antropologia feminista no mundo: diálogos transnacionais ; Feminismos (Africanos e Negros) em contextos de colonialidades ; Contra o apagamento histórico: uma luta das mulheres negras ; Meninas e mulheres na ciência ; O eco da sororidade: acolhendo e ampliando vozes ; Saúde. sexualidade e representações sociais sobre lésbicas e o corpo de mulheres trans.

Universidade, Cidade, Movimentos Coletivos: Espaços de Esperança

A esperança no futuro da humanidade foi tema do encontro com a participação do professor Carlos Vainer, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade da Cidadania Resiste, que propôs pensar um mundo justo e solidário, livre das formas de opressão, exploração e violência, livre do racismo, machismo e lgbtfobia. O debate que teve como o título: “Universidade, Cidade, Movimentos Coletivos: Espaços de Esperança”, foi realizado no terceiro dia do evento, 24/02.

“A verdade é que vivemos tempos sombrios”, disse ele, que lamentou a valorização do individualismo e da competitividade, que leva uma situação de “cada um por si e sabe-se lá quem por todos”. Diante disso, questionou aos demais participantes do encontro: “Temos razões para ter esperança?”.

Foi afirmativa a resposta da professora Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP), que acredita que momentos de tensão e crise como o atual são também oportunidades para mudanças. Ressaltou “o desafio de entender o que está se passando e imaginar futuros possíveis”.

Falando de sua experiência como professora de universidade pública, também lamentou o estímulo a uma lógica de competitividade que, conforme observa, resulta em burocracias e tarefas inúteis, como o preenchimento de formulários para estabelecer ranking de comparação entre colegas.

Independente disso, Rolnik sente que a universidade “fervilha” com estudantes e professores envolvidos em trocas de saberes, trabalhos coletivos e reflexões sobre as questões sociais. “Por isso a minha resposta é sim”, reafirmou.

Dona Mira, liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Bahia (MSTB), também compartilhou a sua esperança no futuro. “Nunca foi fácil para a gente”, disse, ressaltando a sua história de luta por moradia e a perseguição do poder público contra ocupações. “Temos muita coisa para fazer e não podemos desistir”. “Somos descendentes de guerreiros e guerreiras”.

Para a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, Ana Fernandes, somos conduzidos para espaços de esperança quando sobrevivência e solidariedade se conjugam. Ela destacou a relevância dos processos de organização popular através de projetos comunitários, associações de moradores, grupos religiosos, étnicos, culturais, etc.

Para Vainer, estamos sendo desafiados a pensar um novo futuro, novas formas de organização e solidariedade, novas práticas. Durante a sua fala, utilizou o termo “aquilombamento”, que, conforme explicou, tem a ver com reunião, aproximação e autoidentificação para fortalecimento de lutas e resistências.

Ele considera grave o momento ao qual chegou a humanidade, com a cultura do individualismo, o egoísmo e a teoria da prosperidade. Na sua experiência acadêmica, também sente o estímulo a uma lógica de competição “estúpida”, que ameaça referenciais importantes da universidade e o seu compromisso social. Destacou a UFBA como exemplo de resistência, dinamismo e coragem. E falou do prazer de participar do Congresso Virtual 2021.

O debate foi mediado pela educadora popular Viviane Hermida, para quem “esperançar é preciso”, que, segundo ela, tem a ver com a manutenção de uma esperança ativa na luta contra as desigualdades sociais. Durante a sua participação, falou das disputas pelos territórios urbanos e o fenômeno do “aquilombamento”, que foi intensificado durante a pandemia, representando o ativamento das redes solidárias em determinados espaços.

A campanha "Despejo Zero" é uma ação nacional que visa a suspensão de qualquer atividade ou violação de direitos, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades durante a pandemia

A campanha “Despejo Zero” é uma ação nacional que visa a suspensão de qualquer atividade ou violação de direitos, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades durante a pandemia

Ela ressaltou a importância da extensão universitária e do envolvimento em iniciativas como o Observatório das Remoções –  que foi criado para monitorar e desenvolver ações colaborativas com territórios ameaçados de remoções, e a campanha “Despejo Zero” – ação nacional que visa a suspensão de qualquer atividade ou violação de direitos, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades durante a pandemia. Viviane lamentou ainda os cortes de verbas para as universidades e a criminalização dos movimentos sociais. Ela acredita que isso acontece pelo fato de que universidades e movimentos sociais representam uma ameaça à ordem que se pretende estabelecer no país.

Raquel Rolnik sinalizou que os ataques às universidades vêm após um movimento de democratização das instituições que garantiu o acesso da população negra. E lembrou que o ensino público também teve a sua qualidade comprometida em outros níveis (médio e fundamental) quando passaram a ser acessados pela camadas populares.

“Não somos vistos nem como povo, nós, pobres da periferia”, afirmou Dona Mira, denunciando a falta de apoio do Estado.

A potência do trabalho conjunto entre universidades e as comunidades foi destacado pela representante do MSTB, que lembrou o apoio da Faculdade de Arquitetura da UFBA desde o início da pandemia, com a instalação de pias com lavatórios e álcool gel nas ocupações. A Universidade também se fez presente com orientações sobre os perigos da covid-19 e campanhas de distribuição de cestas básicas, relembra a liderança, que tem a compreensão de que os movimentos sociais têm muito a oferecer à academia, numa rica troca de experiência que traz benefícios para ambas as partes.

Por fim, Fernandes definiu a cidade como o espaço para a luta contra as opressões, e a universidade como o lugar para ampliação dos horizontes sociais, para cultivar processos democráticos, construir conhecimento e prestar solidariedade.

Para Rolnik, o futuro ainda não está definido: “Está tudo em disputa”.

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