Congresso debateu os ataques às instituições democráticas e a retirada de direitos em tempos de crise

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Mais uma vez, o Congresso da UFBA não se eximiu da tarefa que vem desempenhando nas edições anteriores: refletir sobre o presente e futuro da democracia no país, seus dilemas e ameaças. Nesta edição, além do tradicional ciclo “Crise e Democracia”, que contou com duas mesas, nos dias 22 e 23, somaram-se outras atividades com propósitos semelhantes, que abordaram a conjuntura política e a crise na América Latina, o fenômeno populista e o neoliberalismo, entre outros assuntos da cena contemporânea. Cientistas políticos, jornalistas, professores e pesquisadores das ciências sociais deixaram sua contribuição para entender o destino do país e, também, da universidade neste contexto.

Crise e Democracia I

Iniciando os debates na primeira noite do Congresso, a mesa “Crise e Democracia I” colocou lado a lado o jornalista, escritor e professor da escola de Comunicações e Artes (USP) Eugênio Bucci, o pesquisador, escritor e cientista político Luis Felipe Miguel e o também cientista político, escritor e professor (UFMG) Leonardo Avritzer. Juntos, os pensadores conjecturaram sobre o atual estado da democracia e, principalmente, o papel das instituições e sua valorização pelos diferentes segmentos da sociedade brasileira.

Leonardo Avritzer inaugurou a discussão sobre as instituições afirmando que existe no Brasil uma degradação democrática, fenômeno marcado por uma degradação institucional da democracia pelos próprios atores políticos. Esses atores a atacam e atacam as suas instituições, movimento amparado na desvalorização das instituições democráticas por uma grande parcela da população. “Não afirmo que a democracia depende unicamente de instituições. Depende delas, de movimentos sociais democráticos, de uma cultura democrática, do respeito ao estado de direito. Mas, certamente, não é possível fazer democracia sem parlamento e sem partidos”, afirmou o cientista político.

Avritzer destacou ainda outros problemas, como a existência de um grupo não-democrático no Brasil, consolidado junto à opinião pública e com apoio de quase 1/3 da população; a imprevisibilidade do papel do Exército diante do agravamento da crise política; e também a degradação da política no Brasil, marcada por uma destruição acelerada da capacidade de gestão do estado brasileiro. “A relação entre crise e democracia vai se determinar nos próximos anos a partir da capacidade que nós vamos ter de reagir a essas questões”, defendeu.

Luis Felipe Miguel ampliou o debate, incluindo algumas das características da atual forma de governar que vão de encontro ao modelo de democracia inaugurado a partir da constituição de 1988: a falta de compreensão da ideia de separação de poderes; a indistinção entre  o público e o privado; a falta de crença nas liberdades individuais; e o desprezo pela laicidade do estado e do conceito jurídico de império da lei. “A ordem que foi estabelecida pela constituição de 1988 foi abalada no momento em que uma série de interesses poderosos entendeu que essa ordem era um obstáculo”, observou Miguel.

O pensador reconhece que o fato é nocivo ao país, principalmente no contexto em que as políticas de saúde, educação e economia estão sendo conduzidas por uma política de “terra arrasada”. “O que falta nesse momento é uma repactuação democrática e, para que isso aconteça, temos que dar lugar à classe trabalhadora, aos pobres e às periferias. Devemos encontrar mecanismos que deem a eles a capacidade de participar nas negociações políticas”, defendeu.

Jornalista e estudioso da comunicação Eugênio Bucci acrescentou mais um elemento que tem sido objeto da terra arrasada, tal qual pontuado por Luis Felipe Miguel. “Há um atentado contra tudo aquilo que se pode entender como civilização. E não é à toa que os detentores do poder enxergam a cultura como alvo, como um flanco inimigo, e que boa parte de sua fúria adota como vítima artistas, professores, jornalistas e cientista”, afirmou Bucci.

Crise e Democracia II

“Nos momentos de crise, quando as coisas estão fora de ordem, é quando os protocolos, regras e normas estabelecidas ganham mais sentido”. Foi com essa afirmação, amparada em uma crônica de Pasquale Cipro Neto, que Jorge Souto Maior, jurista e professor da USP, fez uma crítica à realidade brasileira, dando início à discussão na mesa “Crise e Democracia II”, no dia 23 de fevereiro. Juntos, o professor, a jornalista e escritora Maria Rita Kehl e o professor e sociólogo Ricardo Musse refletiram sobre como cenários de crise favorecem a retirada de direitos civis, políticos e sociais. A mediação ficou a cargo do historiador da ciência e professor do Instituto de Física da UFBA Olival Freire Jr.

“O que acontece na realidade brasileira, no entanto, é que temos um déficit democrático muito grande, em que as crises sempre surgem como um motivo para redução e retirada de direitos”, afirmou o jurista. Para Souto Maior, o argumento da crise vem sendo utilizado para descumprir pactos já estabelecidos, a exemplo da reforma trabalhista de 2016, em que a premissa de crise fundamentou a supressão de direitos trabalhistas já conquistados. “A crise tem sido uma razão para esquecermos o passado e nos aprofundarmos nos problemas”, lamentou.

Também esteve na fala de Jorge Souto Maior o flagrante descompasso entre a Constituição Federal de 1988 e a realidade jurídica e social do país, reflexão igualmente presente no discurso de Ricardo Musse. Musse, que no ciclo de Crise e Democracia no Congresso 2020 fez uma análise alicerçada no cenário atual de pandemia e na emergência do autoritarismo, resgatou, neste ano, a trajetória democrática a partir da Constituição de 88, desde o seu estabelecimento aos sucessivos ataques recentes, movimento que culminou com o que chamou de “desconstitucionalização”.

“Essa constituição foi, ao mesmo tempo, o ápice e o início do declínio. Os movimentos sociais que estavam por trás da Constituição Federal (CF) entraram em declínio logo em seguida, exatamente pela adoção de uma política neoliberal de extermínio de direitos contemplados na CF”, descreveu Musse. Para o autor, a mudança no jogo de forças, que favoreceu a classe dominante, favoreceu também esses ataques à classe trabalhadora e à população mais pobre. “Dessa forma, as democracias se tornaram menos efetivas, se medidas num padrão amplo do conceito que abrange uma série de direitos, como os civis e também o político e os sociais”, destacou Musse.

A visão da psicanálise também entrou no debate. Maria Rita Kehl trouxe o conceito de “laço social” — modo de organização das relações sociais entre as pessoas — para  explicar o risco que seu afrouxamento representa para a sociedade brasileira. “Quando as instituições se desmoralizam, a exemplo do que aconteceu no Impeachment da presidente  Dilma Rousseff, o laço social começa a se afrouxar. Tudo isso aponta para o pior que pode acontecer, do ponto de vista da psicanálise: um convite a romper com qualquer solidariedade entre os membros da sociedade”.

De acordo com a psicanalista, no Brasil, essa relação entre as pessoas e classes sociais sempre foi fragmentada e pouco inclusiva, muitas vezes violenta. “Isso já é algo preocupante em qualquer situação”, avaliou. As recentes manifestações de violência, inclusive sua incitação por autoridades do país, para Kehl, apontam para a gravidade do cenário.

Populismo, autoritarismo e política

Reflexões sobre autoritarismo, totalitarismo e o papel do povo na vida política de um país marcaram a conferência “O fenômeno populista em matéria política”, proferida por Fábio Konder Comparato, jurista, escritor e professor emérito da Faculdade de Direito da USP. O professor caracterizou o fenômeno do populismo como a forte manifestação do povo fora das instituições oficiais de representação, tal qual uma “tropa de choque” de um líder carismático. Ainda segundo o professor, esse populismo teve origem na América Latina, durante a grande depressão nos anos de 1930. “ Esse nascimento abrupto e inesperado foi obra do fato de que a América Latina nunca teve o povo realmente como ator político. Ele sempre foi um servo da classe aristocrática e, depois, da classe burguesa”.

Hoje ainda, segundo Comparato, o fenômeno persiste. “Não existe, praticamente, povo como elemento ativo”, assegura. “Isso faz com que toda nossa organização jurídico-institucional seja bivalente: há um ordenamento jurídico oficial que não corresponde à realidade”. Assim como discutido no ciclo “Crise e Democracia”, o professor afirmou que a ocorrência pode ser claramente percebida na realidade brasileira, diante da Constituição Federal de 88, fracamente desrespeitada. O primeiro artigo da Constituição ilustra o fato ao enunciar que todo o poder emana do povo. “É uma afirmação meramente retórica. Em toda sua história, o povo nunca exerceu um poder efetivo, contentando-se em ser meramente figurante do teatro político brasileiro”, afirmou.

De acordo com Comparato, estamos hoje vivendo um outro tipo de populismo daquele vivenciado na época de Getúlio Vargas, em que o povo aparecia como herói da vida política. No cenário atual, o povo entrou para o teatro político para eleger o presidente, pois estava cansado de ser mero figurante no teatro político. No entanto, a expectativa foi quebrada. “Ele voltou ao teatro político para ser o grande ator, mas, na verdade, continuou como uma espécie de tropa de choque do novo líder. Hoje, a classe dominante não consegue comandá-lo, nem consegue o povo. E chegamos então a essa situação constrangedora da qual estão fazendo parte um grande número de países, em que o autoritarismo é assumido como modo de agir no cenário político”, lamentou.

Política em pauta no Congresso UFBA

Além dessas três meses centrais, outras atividades abordaram a crise democrática sobre diversos aspectos, a exemplo da mesa “América Latina hoje: Conjuntura, crise e desafios”, realizada na quarta-feira, 24 de fevereiro, que teve como objetivo refletir sobre a atual conjuntura sociopolítica da região, a partir da contribuição de pesquisadores brasileiros e dos países vizinhos, com destaque para os casos do Brasil, Equador, Peru e Venezuela. Também abordou crise e democracia na América Latina a mesa “A grande regressão no mundo e na América Latina: desdemocratização, populismos e nacionalismos de direita”, realizada no dia 26/02, com pesquisadores das Ciências Sociais e Políticas.

Conferir outras mesas e vídeo-pôsteres sobre o assunto:

As bases do fascismo no brasil, com Luiz Eduardo Soares, Paulo Miguez.


A conjuntura atual e as tendências políticas no Brasil e na América Latina, com Armando Boito, Emílio Tadei, Luiz Filgueiras, Cristiana Mercuri.

 

Crise econômica, social, política e sanitária: aonde vai o Brasil?, com Carlos Zacarias De Sena Junior, Maria Da Graça Druck, Luiz Filgueiras, Josias Porto

 

Neoliberalismo, democracia restrita e resistências no Brasil, com Lawrence Mello, Maria Malta, Jaime Winter Leon, Tzusy Estivalet, Ilana Coelho, João Victor Marques Da Silva

 

Conversas de esquina II: o pensamento de uma esquerda positiva em diálogos sobre democracia, reformismo, cosmopolitismo e sobre política brasileira na transição democrática, por Marcela Gomes Da Silva Soares e  Paulo Fábio Dantas Neto

 

Democracia e recessão democrática, por Izabela Simas, Renato Francisquini

 

Democracia, Liberdade De Expressão e Fake News, por Rebeca Dos Santos e Renato Francisquini

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