A palavra poder não se liga muito ao lado africano nos estudos sobre o tráfico negreiro no Atlântico Sul. Muito mais habituados estamos ao poder português, considerou Mariza Soares, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), antes de propor inverter esse jogo, por alguns minutos, para exibir à plateia da conferência internacional “Dinheiro e Poder na Era do Tráfico” uma carta do começo do século XIX que conteria a mais pura amostra de um poder diferente — africano.
Disposta a falar sobre “O lugar do rei: guerra e diplomacia no Daomé em 1810″, Mariza Soares era um dos três palestrantes da mesa “Política, economia e sociedade na era do comércio atlântico de escravos”, na manhã de 16 de março, segundo dia da conferência que reuniu no PAF I cerca de duas dezenas dos mais importantes pesquisadores da temática da escravidão e do tráfico negreiro dos séculos XVI a XIX, vindos de várias partes do mundo (ver http://www.edgardigital.ufba.br/?p=1768).
Os trabalhos tinham sido abertos mais cedo com a conferência de Carlos Cardoso, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas da Guiné Bissau (Inep), e debates coordenados por José Lingna Nafafé, da Universidade de Bristol, Reino Unido. Só para refrescar a memória, registre-se aqui que o evento foi montado numa parceria do King’s College London, proposta pelos historiadores Toby Green e Carlos Silva Jr., com o Grupo de Pesquisa Escravidão e Invenção da Liberdade, liderado pelo historiador João José Reis no Programa de Pós-Graduação em História da UFBA.
A carta que a historiadora da UFF mostrou, depois de uma breve incursão pelo contexto da política internacional na época, era do Rei Adandozan, do Daomé (onde hoje está o Benin), para o príncipe regente Dom João, no Brasil, e seu alvo era garantir participação no comércio de escravos no Atlântico Sul, com o monopólio do controle dos portos da costa da África, numa disputa de espaço ferrenha com seu adversário, o rei de Ardra (também no hoje território do Benin, na África Ocidental), e sobretudo poderosos interesses portugueses e ingleses. Entretanto, não há em toda ela uma só palavra sobre tráfico.
É a linguagem da carta o fulcro do interesse de Mariza Soares, em seu olhar, “um discurso de humilhação” a Dom João e, de quebra, ao rei de Ardra – visão de que discordam outros estudiosos. A carta, a olhos contemporâneos, parece mesmo vazada em tom irônico e até de um certo deboche. “Começaram a chegar notícias de que Vossa Alteza real e Vossa soberana mãe, rainha de Portugal, se tinham retirado debaixo da Armada inglesa…”, diz em certo trecho.
“Adandozan se põe na posição de rei falando ao príncipe, portanto, hierarquicamente ele está acima de Dom João”, a historiadora comenta. A alturas tantas, o rei do Daomé, estranhando a fuga de Dom João, comenta: “Pois eu cá na minha terra tenho pelejado muitas guerras, pois, meu irmão, as guerras para mim são divertimento”.
Quem traz a carta ao Brasil é uma embaixada de muitos homens, carregada de presentes pessoais para o príncipe regente, e a intenção é que a correspondência seja entregue ao próprio príncipe, na Corte. Adandozan diz sobre um dos presentes que gostaria que seu “irmão se rebuçasse nos panos e saísse para passear”.
Entretanto, Dom João negociava com os ingleses, quando tanto a embaixada do Daomé quanto a de Ardra chegam a Salvador, no final de outubro de 1810. Recebidas pelo Conde dos Arcos, que acha ridículas as palavras e pretensões de Adandozan, ambas não são autorizadas a seguir para o Rio de Janeiro, permanecem quase um ano em Salvador à espera de uma ordem que não vem, e nada obtêm dos seus propósitos quanto ao tráfico.
Isso não retira da carta, para Mariza Soares, a dimensão de uma peça de exercício de poder, tal como o rei africano do Daomé o toma. “Ele começa a carta com pena de Dom João e termina com a bandeira cheia dos decapitados da guerra que moveu contra Ardra”. Mesmo as mediações que a existência da carta permite supor – a fala de Adandozan, o trabalho do tradutor e a escrita de uma terceira pessoa – não empalidece, para ela, que percepção estava na cabeça do rei.
Foram palestrantes também da mesa “Política, economia e sociedade na era do comércio atlântico de escravos”, na manhã da quinta, 16, José Curto, da Universidade York, que abordou a “Migração forçada e livre no Atlântico Sul: Benguela e Rio de Janeiro, 1700-1850”, e Jaime Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com o tema “‘Portugueses vassalos deste Reino Unido’: interesses lusos no tráfico de africanos para o Brasil, 1818-1828”.
Como podemos ter acesso aos textos dos autores e autoras apresentados neste seminário?