Miguel Giusti: “É preciso evitar que as linguagens tecnológicas, econômica ou digital, se imponham como linguagem única”

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miguel giusti

O filósofo peruano Miguel Giusti, que participou do Congresso Virtual da UFBA 2021

O mito da Torre de Babel, uma passagem bíblica que diz respeito à comunicação entre os povos, serviu de esteio ao filósofo peruano Miguel Giusti para a sua conferência “La Libertad en Babel”, proferida durante o Congresso Virtual da UFBA 2021 (dia 25/02 – Sala B – 18:00). O palestrante foi apresentado pelo filósofo e reitor da UFBA João Carlos Salles, que destacou na trajetória de Giusti o seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Tübingen e o pós-doutorado em Frankfurt, onde foi aluno do filósofo alemão Jügen Habermas.

Salles lembrou também a passagem do conferencista pela presidência da Sociedade Interamericana de Filosofia (SIF), entre 2004 e 2009, quando organizou um congresso, no Peru, com o tema da tolerância, “divisor de águas na sociabilidade em nosso continente”, segundo Salles. Giusti, que atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Peru, antes de começar a sua conferência, afirmou que a tolerância, ao contrário de ser uma “virtude demasiado modesta”, como várias pessoas reagiram quando da escolha do tema, se afirma, nos dias de hoje, como uma “virtude mais indispensável do que nunca”.

Leituras do mito

A história da construção da Torre de Babel está relatada no capítulo 11 de Gênesis, primeiro livro da Bíblia, autoria atribuída pela tradição ao profeta Moisés. Na primeira parte da sua palestra, o filósofo peruano apresenta três visões sobre o mito, tomando como pontos de partida, a leitura de três filósofos contemporâneos que apontam para diferentes direções: o alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002); o italiano Giogio Agamben (1842) e o franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004).

A metáfora de Babel, inicia o filósofo, de múltiplas maneiras representada, é sobre a incomunicação em nossa cultura. Metáfora potente e multifacetada, continua, propõe diversas interpretações de mais de um enigma, um verdadeiro desafio hermenêutico, pois, assim como pode significar confusão, refere-se também a uma cidade divina, ao nome de Deus e à arrogância, entre outras possibilidades.

O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer

Para o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, entretanto, apesar dessa complexidade semântica, fica acordado que a multiplicação da língua não deveria ser considerada um castigo, como sugere inicialmente o texto bíblico mas, ao contrário, um prêmio, sendo o castigo a supremacia de uma única língua, imperativa, com pretensões de suprimir a pluralidade e a diversidade de identidades culturais. Esta é, muito simplificadamente, a leitura de Gadamer, para quem a comunicação intercultural é fonte de enriquecimento entre os seres humanos. Assim, se construiria uma comunicação liberta de “linguagens técnicas e quantificadoras que hoje são impostas à nossa cultura”.

Por outro lado, para o italiano Giorgio Agamben, segundo Giusti, já existia uma língua original, anterior à “confusão babélica” provocada pela imposição cultural. Agamben idealiza uma história da humanidade a partir da infância, destacando ainda que, etimologicamente, o termo infância (in/fans) é igual “ao o que não fala”. Para este autor, é na infância que se dá a origem transcendental da historia, quando se faz a diferença entre língua e fala.

A Babel, então, se instauraria no momento de abandono do estágio infantil anterior, de assimilação e reprodução dos fonemas de todas as línguas do mundo, antes que, adiante, a cultura imponha uma língua determinada. Positivamente, reencontrar a infância, reverter a este estágio, “irmanados por uma capacidade universal de comunicação, é um caminho de redenção de nossas atuais discrepâncias linguísticas e culturais, atribuindo assim, à existência de uma única língua, um sentido positivo, diferentemente de Gadamer”.

O filósofo italiano Giorgio Agamben

Na leitura do mito de Babel do filósofo franco-argelino Jacques Derrida, Giusti destaca a figura do “Deus desconstrutor”, que impõe limites à arrogância humana, desejosa de instaurar uma língua única que, como a torre megalomaníaca, estaria destinada ao inacabamento e à autodestruição. Aqui, Giusti adverte para o perigo das “construções absolutistas”, conceitual, cultural ou politicamente. Retomemos um pouco ao mito, na leitura de Derrida:

“… naquela ocasião, os homens planejavam a construção de uma torre com a qual chegariam aos céus, marcando uma cidade que os uniria e protegeria para sempre, evitando sua dispersão pela face da terra. Ao mesmo tempo, com isso, se fariam um nome. Esse projeto não agradou a Deus, que o interpretou como fruto da arrogância e da soberba dos homens, desafiando-o em sua posição de criador supremo. Deus então raivosamente “clama seu nome: Babel, Confusão”, o que estabelece a diversificação das línguas, impede a consecução do projeto, provoca a dispersão dos homens e a incompreensão entre eles”.

Deus impõe então a sua própria língua multifacetada, que será eternamente estranha e estrangeira aos homens, condenados a uma comunicação falha, incompleta, inconclusa, necessitando sempre do trabalho e experiência das traduções, onde vai residir “a verdadeira performance babélica”, nas palavras de Giusti.

O filósofo franco-argelino Jacques Derrida

Os caminhos da liberdade

Estabelecer a relação e contato entre o conceito e exercício da Liberdad (en Babel) é a proposta do segundo momento da palestra de Giusti, quando a questão da liberdade é associada às diferentes leituras da metáfora, ora apoiada na utopia igualitária de uma língua única e individual, “igualmente emancipadora”, ora apoiada em uma língua coletiva, como um “dique de contenção às pretensões imperialistas”. A luta pela liberdade é uma ação individual ou coletiva? A pergunta estabelece a relação entre o mito e o real.

O conceito de liberdade, conforme o historia Giusti, desde as concepções mais antigas até os conflitos sociais e ideológicos mais atuais, busca responder a reivindicações e movimentos antagônicos. “Não é fácil orientar-se nessa confusão babélica da nossa cultura”, admite o filósofo. Para “facilitar” essa orientação, ele propõe a menção de três dimensões essências, de valores legítimos e relativos, “três pilares” sobre os quais se sustenta e caminha a liberdade hoje. Os pilares da Autonomia, da Opção moral e da Criação coletiva.

IMAGEM I

Autonomia

Aqui, o conceito de autonomia vai de encontro ao que é considerado tradição, religião, por exemplo. Não é a toa que, segundo Giusti, o conceito surge no século XVII, durante a Guerra das Religiões, como forma de combate, com emergência, à intolerância e as concepções herméticas dos cultos. Autonomia, então, é poder decidir por conta própria, independente de qualquer vínculo grupal ou de qualquer entidade coletiva. É, como o nome indica, o direito de se auto legislar, editando a sua própria lei, resguardando, contudo, o livre exercício da vontade de todos. A inexistência de qualquer forma de vínculo social e a ausência de impedimentos externos não põe em desacordo, porém, as regras de convivência e respeito ao pluralismo e à liberdade dos demais.

Opção moral

Esse pilar nos faculta a liberdade de elegermos projetos de vida pessoais, respondendo aos nossos desejos, às nossas vontades e aspirações. Entretanto, a defesa da própria liberdade nos coloca, aqui, de frente à responsabilidade e ao dever de preservar a dignidade humana, fazendo-se a junção da autonomia com a moral, explica Giusti. Nesse segundo pilar, também se abrigam os direitos humanos, seja na sua forma cívica ou estética, esta última se traduzindo no livre cultivo da original e própria forma de vida de cada indivíduo, sem que com isso se impeça igual direito ao outro.

Criação coletiva

Por fim, o pilar da Criação coletiva trata das práticas sociais concretas, a serem compartilhadas por um coletivo, revitalizando as diversas culturas. Para Giusti, esse terceiro pilar funciona como uma síntese dos dois anteriores e deve cobrar a institucionalização das ações por aqueles propostos, “para que não se caia na abstração e nos discursos vazios e ilusórios, sem correlato na realidade. Essas ações terão que ser traduzidas em instituições legalizadas”, afirma.

Voltando a Babel

Finalizando, o filósofo lembra que a cultura da liberdade passa pelo reconhecimento da autonomia e se soma a um pacto de respeito com a autonomia do outro, se fazendo através das práticas sociais historicamente concretas e através das práticas de conduta, de cada ser humano individualmente. “É preciso colocar em prática no mundo real, aplicar a consciência que já temos da liberdade no mundo real, mudando hábitos e costumes (…) É preciso evitar que as linguagens tecnológicas, econômica ou digital se imponham como linguagem única em detrimento da identidade e valores próprios das culturas particulares (…) provocando a instrumentalização da natureza…”, como uma metáfora contemporânea de uma torre semi destruída de Babel.

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