Luiz Eduardo Soares: “O que está sendo subvertido é o poder, o patriarcalismo e o falocentrismo”

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É no anseio reacionário por “ordem” em uma sociedade que, ao longo do século XX, “explodiu” estruturas tradicionais que limitavam corpos, gêneros e sexualidades a binarismo, a velhas coreografias, figurinos e dramaturgias, que repousam as “bases do fascismo no Brasil” aos olhos do antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, autor de vinte livros, entre eles “Dentro da Noite Feroz: o Fascismo no Brasil” (Boitempo, 2020). Foi esse o tema de sua instigante palestra, intitulada “As Bases do Fascismo no Brasil”, no Congresso da UFBA, realizado de 22 a 26 de fevereiro.

A mediação foi do vice-reitor da UFBA, Paulo Miguez, que apresentou o Congresso como um gesto de resistência da universidade pública, e da UFBA em particular. “É um projeto de futuro e, nesse momento, pensar futuro é mais que uma obrigação desta casa. Mas é um desafio extremamente complicado, pelas condições que estão postas para nós.”

Antes de explorar as vivências atuais do fascismo no país, Luiz Eduardo Soares – mestre em Antropologia, doutor em ciência política com pós-doutorado em filosofia política e secretário nacional de segurança pública (2003) – fez um retorno histórico ao integralismo, movimento de extrema direita que surgiu em 1930 no Brasil. Com o lema “Deus, pátria e família”, o movimento se constituía como nacionalista, autoritário, tradicionalista, com profunda afinidade com o fascismo italiano e o nazismo. Tinha entre seus símbolos a letra grega ∑, o sigma.

A importação de crenças e perspectivas de Mussolini e Hitler encontrou solo fértil no Brasil, país que conviveu com a escravidão por quatro séculos e que perpetua diversas formas de violências e desigualdades, como lembrou Soares. “Isso dá bases sociais que precipitam o ódio, a discriminação e a brutalidade que sempre estiveram entre nós”. Embora não tenha sido vitorioso em sua época, esclarece, o integralismo marcou a história do Brasil e atravessou o século XX.

Apesar da derrota do integralismo, Soares comentou que, de inúmeras formas, as ideias do movimento continuaram seu percurso ao longo da história. “O integralismo sempre esteve presente na ditadura militar [iniciada em] 1964. Lideranças significativas do movimento estiveram no poder (…). Esses personagens estiveram ativos durante a ditadura e não desapareceram do mapa”, comentou, lembrando que a transição para a democracia produziu um grande silêncio e negligência em relação aos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura. De modo que Soares entende a realidade política e social do Brasil de hoje “como algo que não é novo, embora tenha alcançado características novas, peculiares, singulares neste momento”.

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Paulo Miguez e Luiz Eduardo Soares

“Somos o país do racismo estrutural, das desigualdades profundas, da exploração de classe com uma intensidade extraordinária, e essas são marcas recorrentes na nossa história. Todos os problemas alcançam volume superior, intensidade mais dramática, para aqueles que são também vítimas das estruturas organizacionais, sociais e econômicas no Brasil: as classes subalternas, os negros e as negras em particular. É o país também da homofobia, da misoginia, da transfobia”, lamentou Soares. Porém, ele lembra também que somos o país da resistência.

 

“É o país da vitalidade dos espaços universitários, apesar de todas as pressões e limitações que decorrem justamente dessa espécie de guerra cultural obscurantista que cerca não só a universidade, mas a educação de modo geral e a cultura em seu sentido mais amplo. Nós temos aí as sociedades indígenas violentadas, depreciadas, atacadas, o meio ambiente que tem sido alvo de intervenção predatória, e tudo isso no contexto que a própria democracia está ameaçada. Daí a importância do nosso tema”.

Soares explora então o bolsonarismo como objeto, “a respeito de suas heterogeneidades internas e o fato de formarem uma ideologia formalizada, coerente. Apesar das apropriações de credos e valores serem múltiplas e muitas vezes contraditórias entre si, nebulosa, descontínua e heterogênea, merece sim consideração como fenômeno histórico”.

 

Para Soares, “as conexões do bolsonarismo não são apenas ideológicas, políticas, superficiais e com agendas econômicas gravíssimas de oportunidades”. Mais do que isso: “há um enlace de natureza inconsciente, simbólica”. Ele expõe, então, o que entende como uma demanda “muito profunda” da sociedade brasileira por ordem. “Não se enganem”, ressaltou, “não se trata da ordem no sentido de segurança pública, a ordem pública que contrastaria com a criminalidade e a transgressão”. Não, o mergulho que Soares propõe é mais profundo, psicanalítico, já que toca, no limite, o inconsciente das pessoas.

Ao descrever a atualidade como a era da incerteza, da insegurança, da angústia e da ansiedade, Soares transita entre economia neoliberal, ambiente e tecnologias, destacando elementos dentro dessas esferas que potencializam sentimentos relacionados à precarização e atingem as esferas individuais e coletivas. E destaca: “Não por acaso as associações entre neoliberalismo e incertezas, falta de proteção social por causa da explosão dos direitos e a própria depressão têm laços que são pesquisados mundo afora.”

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Domínio Público/Wikimedia Commons

Soares identifica, por fim, o abalo (ou explosão, como repetiu algumas vezes), de estruturas que limitavam corpos, gêneros e sexualidades a binarismo, a velhas coreografias, figurinos e dramaturgias antigas. “Nisso tudo o que era destino passou a ser obra de liberdade”, refletiu. Liberta-se, com tal explosão, o sujeito disposto à criatividade, a enfrentar a prática de si mesmo, não mais preso a papeis historicamente construídos. “A experiência que separou a categoria, na vivência e no valor, da ética, sexo e gênero tornou cada sujeito um enigma para si mesmo”, afirmou, lembrando “os sujeitos desprendidos de si que começaram lá com Freud, com a cultura crítica, com os movimentos feministas, gays, minoritários que assumiram grande protagonismo”.

Surge então a tal demanda por ordem, um “pedido de socorro dos inseguros, angustiados, que precisam de ancoragens ontológicas para radicar de novo o corpo do ser e os próprios ser. De tal modo que se tranquilizem e reconstruam as tradições”. Ele explicou que o que está sendo abalado é fundamentalmente a figura do homem e da mulher ou como “o que está sendo subvertido é o poder, portanto, o patriarcalismo e o falocentrismo”.

“O macho está em apuros num nível de profundidade bastante radical, o que promove angústia e ansiedade. Com o macho e a fêmea, com o jogo de linguagem e vivências, de construção performática e social, nós temos a família também posta em questão, e a partir daí um conjunto de valores, de protocolos de comportamentos que estavam fundamentalmente estabelecidos e que vão para o espaço. O que é amor? A relação afetiva? Que tipo de amor é possível? Permitido? Quais são as modalidades de encontro? E de institucionalizações dos encontros?”, questiona Soares.

movimento feminista

 

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