Setenta e cinco por cento das mortes de defensores e defensoras de direitos humanos na América em 2016 ocorreram no Brasil, de acordo com relatório da Anistia Internacional de 2018. Cidadãos que lutavam pelo direito à terra e pela vida de mulheres e jovens negros, líderes comunitários, defensores do meio ambiente e ativistas que buscavam garantias previstas legalmente: o direito à vida, à terra, à igualdade e à dignidade humana. Apesar de tantas trajetórias interrompidas, o esforço de muitos outros torna a luta por essas garantias ainda possível. É o caso dos cinco personagens do webdocumentário “Humanos por Direitos”, obra produzida pelo Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania (CCDC), órgão complementar da Universidade Federal da Bahia sediado na Faculdade de Comunicação.
O webdoc mostra como defensoras e defensores de direitos humanos na Bahia têm resistido e levado adiante suas pautas, em um cenário político e social adverso. A produção teve início em 2019, após a aprovação em edital de experimentação artística da Pró-reitoria de Extensão da UFBA. A ideia era destacar as lutas por direitos humanos na Bahia a partir da vivência de pessoas invisibilizadas pela mídia tradicional, conforme explica Tâmara Terso, pesquisadora responsável pelo argumento e pesquisa do documentário. “Desde 2017, o Brasil figura nos rankings internacionais com índices alarmantes de crimes contra defensores de direitos humanos. Essa situação, de 2017 para cá, só vem se agravando e, em contrapartida, a visibilidade dessas mortes não acontece”, explica a pesquisadora.
Neste ano, de acordo com Tâmara, agregam-se ao cenário já extremamente perigoso aos defensores de direitos humanos outros problemas que têm dificultado a sobrevivência de povos tradicionais, da população negra, de quilombolas e outros povos na Bahia. “Esse documentário estreou em um momento crucial, em que estamos sofrendo mais um genocídio do ponto de vista das mortes por Covid-19, intencionais diante da ausência de políticas públicas. São essas pessoas que também estão presentes na obra, que denunciam e estão sendo vítimas de violações”, explica Tâmara. Não à toa, o dia de Luta Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, celebrado em 21 de março de 2021, foi escolhido para o lançamento do documentário.
Assista ao webdoc no canal do CCDC no Instagram.
Quem defende o quê?
Uma das vozes presentes no documentário é a de Maria de Fátima Lima Ferreira, marisqueira que desde 2019 sofre com os efeitos do vazamento de óleo na costa brasileira. Somada às consequências do desastre, Maria de Fátima e sua comunidade, o Quilombo Alto do Tororó, estão sendo ameaçados pela instalação de empresas na Baía de Aratu, o que compromete o equilíbrio ambiental do lugar e afeta a sobrevivência da comunidade. No documentário, o pedido de Maria de Fátima é feito em alto e bom som: “Parem de nos matar. Somos nós que botamos o alimento de vocês. É o pescador, é o povo da roça”.
O pedido é endossado pelo Cacique Ramon Tupinambá, liderança do território Tupinambá de Olivença que figura no primeiro episódio de Humanos por Direitos. “O nosso povo, desde o princípio, sempre sofreu com tudo isso. Hoje, no século XXI, nada mudou. Mudam-se apenas as práticas. As cidades cresceram dentro de territórios indígenas e o nosso território vem sendo tomado”, descreve o Cacique. A liderança explica, ainda, que os Tupinambás de Olivença tiveram a terra delimitada, um dos processos da demarcação da terra pertencente aos indígenas, mas que estão sofrendo com interesses financeiros que buscam dar outra destinação ao lugar.
A busca por garantir o direito ao território de seu povo é uma das pautas da liderança. “Acredito que, como povo originário, muito pouco nos foi consultado, e às comunidades tradicionais, sobre nossa relação com a terra, que para a gente é sagrada. Para o colonizador é diferente. A terra é instrumento de manutenção de poder e posse e desde sempre existiu essa caminhada colonizatória no país”, afirma.
As pautas defendidas por Cacique Ramon e por Maria de Fátima mostram que, no final das contas, aquilo que é defendido como direitos humanos converge para um direito fundamental: o direito à vida. Ao mesmo tempo que o alimento pescado pela comunidade de Maria de Fátima é o sustento de muitas famílias, também é parte da alimentação de muitos soteropolitanos, o que configura uma questão de segurança alimentar. Assim como a defesa do território Tupinambá também é uma defesa pela manutenção de um equilíbrio ambiental.
No entanto, esse impacto direto da defesa dos direitos humanos na vida de toda a população não tem sido compreendido totalmente, conforme observa Tâmara Terso. “Historicamente, defensores e defensoras de direitos humanos sofreram uma criminalização midiática de organizações que usam do discurso de imparcialidade, mas que são financiadas por interesses conflitantes com o direito do povo. Defensor de direitos humanos é quem sustenta o direito de plantar, para que se tenha o que comer. É quem tenta assegurar a vida de jovens de 12, 15 anos, que infelizmente morrem por falta de políticas públicas. É o direito de ser respeitado pelo que você é, não por sua orientação sexual ou identidade de gênero.”
Comunicação, Democracia e Cidadania
O webdocumentário Humanos por Direitos faz parte do braço de extensão desenvolvido dentro do Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania (CCDC/FACOM-UFBA) que, desde 2008, atua no monitoramento de violações de direitos na mídia. O caráter extensionista da atividade é demonstrado pela aproximação com os atores sociais a partir de suas próprias comunidades. “Tentamos não reproduzir uma intervenção da universidade no lugar e não enxergar essas comunidades como um tubo de ensaio. Fazer o documentário foi um aprendizado muito grande de aprofundamento do conhecimento, da pauta, como uma aproximação dos movimentos sociais”, reconhece Tâmara.
Além de visibilizar cada uma das pautas, o webdoc também teve como propósito voltar o olhar para o direito à comunicação — não apenas o de receber a informação, como produzi-la —, como um direito humano fundamental. Direito esse que é reconhecido como necessário pelo Cacique Ramon. “Eu espero que os meios de comunicação possam chegar, que possamos estruturar essa comunicação, mostrar o que a comunidade tem feito, em tempo de pandemia, por exemplo. Para desconstruir, é preciso reeducar e a comunicação possui papel fundamental”, defende. Em uma metalinguagem apropriada, o webdoc aborda o direito à comunicação na visão de Niltinho Lopes, liderança que, na obra, discorre sobre a democratização da comunicação.
Os episódios de Humanos por Direitos podem ser acompanhados semanalmente no perfil do Instagram do CCDC, com lançamento às quintas-feiras. Mais informações sobre o Centro, podem ser acessadas no site do órgão: www.ccdcufba.com.