Nelson Amaral: encolhimento do Estado e destruição das universidades é “caminho suicida para o país”

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O professor Nelson Cardoso Amaral (foto: Divulgação / ADUFG Sindicato/Proifes)

Os investimentos federais em Educação, Ciência e Tecnologia, Saúde, Gestão Ambiental e Cultura despencaram entre 2014 e 2020. Antes que se possa imaginar que falta dinheiro à União, é preciso observar que, no mesmo período, o governo passou a gastar mais em duas áreas – Defesa e rolagem da dívida pública – valores que superam os cortes nas chamadas “áreas sociais”. Os dados estão disponíveis no levantamento “Dois anos de desgoverno – os números da desconstrução”, realizado a partir de dados da Câmara dos Deputados pelo pesquisador Nelson Cardoso Amaral, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, e publicado recentemente no portal A Terra é Redonda.

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O encolhimento do Estado, segundo Amaral, prejudica “sobretudo os mais pobres, [que,] apesar de pagarem tributos, passam também a pagar pelos serviços dos setores sociais que foram ‘abandonados’ pelo Estado: educação, saúde, cultura, saneamento etc.”

Um dado curioso do levantamento indica que o valor “economizado” com a função Educação do orçamento federal, entre 2014 e 2020 (R$ 37,7 bilhões, o equivalente a 28,5% a menos) foi praticamente redirecionado à função Defesa, que, entre 2015 e 2019, recebeu R$ 37,6 bilhões a mais. Outra ação que passou a receber mais recursos – impressionantes R$ 250 bilhões de acréscimo entre 2014 e 2020 – foi a rolagem da dívida pública, que, não por acaso, não é abrangida pela Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, que congelou por 20 anos os investimentos federais em praticamente todos os setores.

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O levantamento também aponta uma ação em curso de desmonte das agências de fomento à pesquisa e de verdadeira aniquilação das universidades e institutos federais – que, embora sejam responsáveis por 95% da ciência produzida no país e tenham crescido incorporando estudantes das parcelas mais vulneráveis ao longo da última década – , sofreram cortes de 39,9% dos recursos para custeio de despesas básicas, como água, energia, segurança e limpeza, e de assustadores 96,4% das verbas para obras e equipamentos, entre 2014 e 2021. ” É [nas universidades] que estão pessoas, em geral, críticas, que fazem reflexões embasadas no conhecimento científico e, por isso, são consideradas pelos grupos que assumiram o poder como ‘comunistas’ e precisam ser destruídas”, afirma Amaral. “Este é um caminho suicida para o país e que não contribuirá para a formação de uma Nação mais independente, menos desigual, com distribuição de renda mais equilibrada e riqueza por habitante mais elevada.”

Leia abaixo a entrevista concedida pelo professor Nelson Amaral, por e-mail, ao Edgardigital.

Quem se beneficia com o deliberado e dramático encolhimento do Estado brasileiro?

Quando se fala em encolhimento do Estado, isso significa uma ampliação da atuação do setor privado. Assim, temos que falar sobre a direção que se dá aos recursos arrecadados da população quando são cobrados os impostos, as taxas e as contribuições (tributos). Diminuindo-se os recursos aplicados nos setores sociais, ficam mais recursos para os setores que interessam àqueles que não se preocupam com o bem-estar da população. Dessa forma, [esse encolhimento afeta] sobretudo os mais pobres, [que,] apesar de pagarem tributos, passam também a pagar pelos serviços dos setores sociais que foram “abandonados” pelo Estado: Educação, Saúde, Cultura, Saneamento etc.

Como podemos interpretar o contraste entre o aumento dos gastos com defesa e rolagem da dívida pública e o franco desinvestimento em educação, saúde, ciência e tecnologia, meio ambiente e cultura a partir de 2014?

Realmente, é flagrante este contraste que você apresenta. Uma interpretação possível para esta ação, sobretudo a partir de 2016, é a de que os grupos que assumiram o poder pós-impeachment de Dilma Rousseff não deram prioridade aos setores fundamentais para o futuro do Brasil e estão destruindo esses setores por uma asfixia financeira. Quando examinamos o programa Ponte para o Futuro, apresentado [pelo então vice-presidente Michel Temer, em dezembro de 2015, pouco antes] do processo de impeachment, e o Plano de Governo lançado em 2018 que venceu as eleições presidenciais, acoplando-o a depoimentos do presidente eleito, verifica-se que essa foi uma ação planejada

Em relação às universidades, vemos, de um lado, um claro projeto de asfixia do sistema federal, e do outro, a completa ausência de um projeto alternativo de educação superior minimamente razoável – o que explica o malogro de propostas estranhas, como o “Future-se”. Por que as universidades – na completa acepção da palavra – incomodam tanto? Pode ir adiante um país que não invista decentemente em suas universidades?

O processo de asfixia dos setores sociais chegou, é claro, às universidades institutos federais, reduzindo de forma dramática os recursos para a manutenção das instituições – pagamento de água, luz, internet, limpeza, material de consumo etc. – e para a atualização e expansão de seus laboratórios. Foi muito bom você falar na proposta do Future-se [apresentada pelo Ministério da Educação em 2019 e abandonada em 2020, após forte resistência do sistema federal de educação superior], que propunha retirar a autonomia de gestão financeira das instituições universitárias; ela se caracteriza como mais um ataque a essas instituições, por degradar o que elas possuem de mais valioso, que é a autonomia.

A partir da posse do novo governo federal, em janeiro de 2019, ficou explicitada a execução de parte da Proposta de Governo que abomina as ações públicas realizadas no Brasil desde a Constituição de 1988, por entender que o país foi assaltado por “comunistas”, desde o Governo Sarney. E aí está a resposta para a sua pergunta: por que elas incomodam tanto? É nelas que estão pessoas, em geral, críticas, que fazem reflexões embasadas no conhecimento científico e, por isso, são consideradas pelos grupos que assumiram o poder como “comunistas” e [que, portanto,] precisam ser destruídas! Esse é um caminho suicida para o país e que não contribuirá para a formação de uma nação mais independente, menos desigual, com distribuição de renda mais equilibrada e riqueza por habitante mais elevada.

Também despencou o investimento nas agências de financiamento à pesquisa. Que país se constrói sem ciência?

No Brasil as instituições públicas de educação superior são responsáveis pela realização da quase totalidade da pesquisa científica – esta é a verdade, apesar do presidente declarar, em uma fake news, ao contrário. Analisando-se a evolução dos recursos da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], do CNPq [ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e do FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], verifica-se que a desconstrução atinge de forma drástica essas agências de fomento. As instituições, portanto, estão sendo abaladas no desenvolvimento de suas atividades de ensino, de pesquisa e de extensão. Se ainda é necessário afirmar que a ciência é fundamental para a construção de um país, a pandemia que estamos vivendo no planeta (no Brasil já são mais de 360 mil mortes desde março de 2020) mostrou de forma dramática a necessidade de reafirmamos: “a ciência é fundamental!” Será que ainda teremos que ficar comprovando diariamente que a Terra não é plana?

Suponhamos que o próximo governo e o próximo Congresso Nacional revoguem o teto de gastos e se empenhem em recuperar a capacidade de investimento do Estado. Em quanto tempo conseguiriam retomar o nível em que o país se encontrava há 10 anos?

Existe um ditado popular que afirma: destruir o que existe é muito fácil, o difícil é construir. Esperamos que o processo de desconstrução e desfazimento que foi ordenado por Jair Bolsonaro em Washington no dia 17 de março de 2019 [durante a primeira visita oficial do presidente aos Estados Unidos] e está em execução, não dure muito tempo. Dois anos já foram mais que suficientes para fazer desabar os recursos aplicados em setores fundamentais para o futuro do Brasil. Não é possível estimar o tempo para a recuperação. A resposta para essa questão tão objetiva é complexa e depende de fatores políticos, sociais, econômicos e geopolíticos que flutuam muito e não são dados a priori, para que seja possível uma análise mais sistematizada e coerente. Teremos novas eleições em 2022, e este é o primeiro fator a ser discutido: quais grupos assumirão o poder e com quais propostas.

A lei do teto de gastos (EC 95, aprovada no início do governo Temer) deixa propositalmente de fora os gastos com a rolagem da dívida pública. Por que se fala tão pouco sobre isso no Brasil?

A Emenda Constitucional 95, chamada erroneamente de “teto de gastos”, deveria ser nominada de congelamento das despesas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário por 20 anos – ou seja, até 2036. Apenas uma informação é bastante para mostrar o absurdo desta medida: a população brasileira terá novos 20 milhões de pessoas até o ano de 2036; como atender o aumento da necessidade de educação, saúde, habitação, saneamento básico? Esse assunto é suficientemente debatido no ambiente universitário (mais um motivo para perseguição às universidades!), entretanto, essa medida é apoiada pelos grandes grupos econômicos, pelo mercado financeiro, pela mídia comercial. Isso interdita a informação e impossibilita que ela chegue até a população brasileira, que sofre com o desemprego, com baixos salários, salário mínimo sem aumento real, que teme pelo seu futuro e não vê a possibilidade de dias melhores. Quando olhamos para o interior do poder Executivo, nota-se, como já discutimos, que foram priorizados a Defesa Nacional e o pagamento de juros, encargos e amortização da dívida. A revogação desta EC 95 é urgente e deveria ser uma das primeiras ações para deixarmos para trás o cenário de destruição que estamos presenciando.

 

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