“A casa da Ladeira da Praça, depois Rua Visconde do Rio Branco, acolheu a Faculdade de Direito, como uma catedral recebendo em festa os Sacerdos Magnus [grandes sacerdotes”, em tradução livre]. Tudo ali falava da glória da Bahia, que o novo inquilino vinha continuar.” Assim descreveu o jornalista e cronista Aloísio de Carvalho, o “Lulu Parola” (1866-1942), a instalação da Faculdade de Direito Livre da Bahia, no centro da cidade do Salvador, no ano de 1891.
Transcorridos 130 anos, o momento é de celebração. Foi o que fez a Congregação da Faculdade de Direito da UFBA (FDUFBA), no dia 15 de abril, mesma data em que, em 1891, seu primeiro diretor, José Gonçalves da Silva – e também primeiro governador eleito do estado da Bahia – presidiu, no segundo andar alugado do velho prédio colonial, a sessão solene na qual se fundou a primeira faculdade de direito da República, e a terceira, em estudos do direito, do país.
Em cerimônia solene transmitida virtualmente, do atual prédio da FDUFBA, no Campus do Canela, essa historia de 130 anos foi lembrada com emoção por professores, servidores e alunos da unidade de ensino festejada, bem como por personalidades do mundo jurídico da Bahia e do Brasil. Mas as homenagens começaram logo pela manhã, com uma sessão especial alusiva à data na Câmara de Vereadores de Salvador, iniciativa do jurista e vereador Edvaldo Brito (PSD), também ex-aluno e atual professor da unidade.
Na sessão, presidida por Brito, estiveram presentes o reitor João Carlos Salles e o diretor da Faculdade de Direito, professor Julio Rocha – que enalteceu a data e lembrou que a FDUFBA é referência no país desde a sua criação – além do Ministro do STJ, desembargador Paulo Furtado, do professor Luis Viana Neto e da professora Maria Auxiliadora Minahim, decana da unidade.
Brito lembrou nomes de seus ex-professores, como Orlando Gomes, Calmon de Passos e Arx Tourinho, e agradeceu declarando que “a Faculdade Direito, uma das primeiras do Brasil, é um marco na formação jurídica e cultural do país, sempre ao lado da sociedade, e muito me orgulha ter sido aluno e ser professor desta Casa desde a década de 1950. Vida longa”.
O reitor João Carlos Salles destacou o papel de vanguarda que a instituição sempre exerceu e acrescentou: “A Faculdade de Direito veio impregnar a UFBA e a UFBA se impregnou com a Faculdade de Direito”. Além dessa integração, o reitor salientou ainda a autonomia e liberdade de pensamento exercidas naquele centro de formação acadêmica e a sua consolidação, “mais do que como apenas uma repartição, mas como uma entidade, um terreno sagrado de nomes lendários”.
Solenidade
A primeira parte da cerimônia solene, à noite, foi conduzida pelo diretor Julio Rocha, que lembrou as diversas gerações que passaram pela Faculdade de Direito, em momentos que marcaram a historia recente do país, como o golpe militar de 1964, a redemocratização pós-ditadura e os atuais tempos pandêmicos, sempre cumprindo o “compromisso histórico do exercício do Direito e da Justiça”.
A professora Maria Auxiliadora, decana da unidade, falou do momento de “desassossego e dor que estamos vivendo diante da pandemia que faz desse momento menos uma festa e mais um comunicado a toda a sociedade”. O professor Celso Castro também concordou que aquela “não era uma noite festiva”, mas um compartilhamento da memória e de uma historia afetiva que sempre se atualiza. “A Faculdade de Direito habita a nossa identidade”, declarou.
Também como parte da solenidade, houve o lançamento de publicações e edital para a concessão do prêmio de TCC, dissertação e tese “Faculdade de Direito da UFBA: 130 anos de contribuição nacional”, bem como a apresentação do projeto “Direito no século XX, História, Memória e Informação”, iniciativas da Biblioteca Teixeira de Freitas e do Memorial da Faculdade de Direito.
Em seguida, o Madrigal da Escola de Música da UFBA apresentou o Hino 130 anos, composição do professor Heron Gordilho de Santana, e a primeira parte da solenidade foi encerrada com uma homenagem aos docentes, técnicos administrativos e ex-alunos.
Palestras dos convidados
Sob a condução do reitor João Carlos Salles, que assumiu a presidência da sessão solene, falaram os três convidados especiais da noite. O primeiro foi o professor Ricardo Fonseca, reitor da Universidade Federal do Paraná, que discorreu sobre “Universidades e Faculdades de Direito como espaço de liberdade e emancipação: uma saudação aos 130 anos da FDUFBA”. Fonseca classificou o momento atual momento do país como “o pior das últimas décadas, duros caminhos que tornam ainda mais evidente o papel das universidades como instituições de cultura e de educação, ao mesmo tempo em que são também espaços de resistência contra o autoritarismo, a barbárie e o caos, em defesa da nação.” Para Fonseca, os recentes cortes nos orçamento das universidades públicas, por exemplo, são “um golpe cruel, um ataque real” aos espaços de liberdade, emancipação e pluralidade, “que hoje desempenham papel peculiar contra a erosão da democracia.”
O segundo convidado foi o professor baiano Antonio Gidi, graduado em direito pela UFBA e atualmente professor da Syracuse University (EUA), autor de um livro sobre a história da Faculdade de Direito, tema da sua palestra. Gidi rememorou fatos interessantes, como a prática da coleta de donativos para que a primeira Faculdade de Direito pudesse funcionar em Salvador, além das diversas sedes, dos primeiros alunos e professores negros e das primeiras alunas e professoras mulheres. O professor relembrou também o momento de descoberta de uma farta documentação na “cafua” da Faculdade de Direito – documentos esses que formam o que é hoje o rico acervo do Memorial da Faculdade de Direito, em parte digitalizado e acessível na internet.
A professora Dora Lucia Bertulio, ex-Procuradora Geral da Fundação Palmares, fez a palestra “130 anos e os desafios daqui para frente”, em que teceu criticas ao ensino jurídico no Brasil, que silencia, através dos tempos, diante do racismo excludente dos negros do convívio político e social, determinando-lhes os espaços possíveis de ocupação, mesmo após a chamada abolição. Para Bertulio, esse viés acaba contribuindo para a manutenção do racismo, como também do machismo, nas instituições de ensino do direito. A professora Dora lembra inclusive que, em 1891, enquanto a Faculdade era fundada, como um exemplo do positivismo da nova República, vigia o Código Criminal de 1890, criminalizando ações que atingiam, principalmente, os homens e os jovens negros.
O reitor João Carlos Salles lembrou que a UFBA é um espaço de reflexão e, como tal, cobra a todo instante a crítica e a possibilidade de abrir novas clareiras, possibilitando novas aventuras intelectuais. Salles elogiou o importante papel desempenhado por docentes e estudantes da unidade “no debate sobre a ampliação dos direitos, não só nas questões raciais, cmo também nas trabalhistas, sobre os direitos das comunidades tradicionais e dos terceirizados”.
O reitor aproveitou ainda para citar os nomes de destacados alunos egressos da FDUFBA, como Hermes Lima, Aliomar Baleeiro, Adalicio Nogueira, Waldir Pires, Jorge Hage, Josaphat Marinho, Orlando Gomes, os ex-reitores Lafaiete Pondé e Alberico Fraga, além do cineasta Glauber Rocha e do compositor Raul Seixas. E prestou uma homenagem especial ao advogado e amigo Nilson Berbert Pessoa, seu “primeiro vínculo com a Faculdade de Direito”, que lhe apresentou ao professor Celso Castro e à Faculdade, por ele considerada “a mais importante do Brasil, quiçá do universo” – introdução que ajudou conferir, em seu imaginário, um “sabor de lenda” ao espaço da unidade, sempre que revisitado.
Histórias

Antigo prédio da FDUFBA, na Piedade
“Hoje, que os brasileiros se vangloriam de possuir cultura igual à dos mais adiantados povos progressistas, seria uma vergonha sintomática de maiores aviltamentos para o futuro, se a consciência nacional, acobardada, emudecesse diante dos responsáveis pelos trucidamentos de Canudos e Queimadas”.
O parágrafo consta de um manifesto escrito pelos estudantes da Faculdade de Direito da Bahia, em 3 de novembro de 1897, em protesto contra a degola dos prisioneiros seguidores de Antônio Conselheiro. O Manifesto Dirigido à Nação pelos Alunos da Faculdade de Direito da Bahia condena a ação em que prisioneiros foram degolados e na lista dos signatários estão 41 nomes. O documento é considerado um dos primeiros protestos estudantis do Brasil.
No início da República e com a criação da Faculdade de Direito, os acadêmicos passaram a se posicionar em relação a alguns dos principais acontecimentos da história brasileira. Documentos como esse marcaram a vida da Faculdade Livre de Direito, inaugurada na mesma sala em que foi assinado o decreto de abertura dos portos “às nações amigas” por D.João VI, inspirado por José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairú – a sala da casa 19 da Ladeira da Praça, que já fora um pequeno sobrado onde, no século XIX, nasceu José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, estadista e jornalista baiano, que acabou dando nome à rua.
O cenário de surgimento da Faculdade de Direito decorreu da instauração da República, que possibilitou que particulares pudessem implantar instituições de ensino superior livres da participação estatal.
Segundo o diretor Julio Rocha, em seu livro “Faculdade de Direito da Bahia: Processo histórico e agentes de criação da Faculdade Livre no final do século XIX”, a faculdade “é resultante da transição política do Império para a República e extremamente influenciada pelos agentes políticos que carregam a relevância do bacharelismo e sua ocupação da estrutura política do Estado e sua reordenação teórico-conceitual, de matriz liberal e positivista, do final do século XIX, com as contradições e peculiaridades regionais da Bahia”.
A reforma produzida por Benjamin Constant autorizava o Governo a conceder instituições particulares de ensino, as Faculdades Livres, sob os auspícios do positivismo que marcou a inauguração da República brasileira e com amplo apoio político, de setores da economia e da imprensa, tendo inclusive a casa Legislativa aprovada subvenção, em 1982, no valor de “trinta contos de réis anuais”, paga em prestações semestrais, segundo consta na Revista da Faculdade Livre de Direito da Bahia, publicada em 1892.
Mulheres e Negros

Atual prédio da FDUFBA, no campus do Canela
O professor Julio Rocha narra também, em seu livro, que somente no século XX é que apareceriam as primeiras mulheres formadas em direito, após a publicação do decreto que permitiu o acesso das mulheres aos cursos de direito. Chamava-se Marietta Gomes de Oliveira Guimarães a primeira mulher a cursar e colar grau em direito, entre 1908 e 1911.
“Por outro lado, diante do perfil étnico, informa Rocha, majoritariamente formam-se brancos, contudo, observa-se que estudantes negros e pardos começam a ingressar na Faculdade nas primeiras turmas e a partir de 1892 os concluintes colam grau. Os documentos acadêmicos não indicam o perfil étnico-racial. Na análise das fotos de formatura, dos registros existentes, verifica-se traços físicos distintivos de etnia negra/parda nos estudantes.”
Frequentada por 93 alunos matriculados, a Faculdade Livre de Direito da Bahia formava, em 1891, a primeira turma de bacharéis de Direito que pagavam, por ano, de trinta contos de réis como subvenção. A cultura do bacharelismo jurídico entra em nova fase, e a Faculdade muda-se para o Terreiro de Jesus e, depois, para a primeira sede própria, na Rua Portão da Piedade, número 28, no início do século XX (1911) – onde atualmente funciona a Ordem dos Advogados do Brasil, secção Bahia. De lá, vai para o prédio do Campus do Canela, onde hoje conta com 2500 discentes, 130 docentes e 30 servidores.
Além dos nomes já citados, a Faculdade de Direito formou, ao longo do tempo, outros juristas, políticos, intelectuais e artistas como: Arx Tourinho, Leovigildo Filgueiras, Nestor Duarte, Nelson Sampaio, Machado Neto, Auto de Castro, Ary Guimarães, Carlos Coqueijo Costa, Washington Trindade, Luis de Pinho Pedreira, Calmon de Passos, Pedro Manso Cabral, Maria Auxiliadora Minahim, Fernando Santana, George Fragoso Modesto, Marília Muricy, Heron Gordilho, Fredie Didier, João Ubaldo Ribeiro e Waly Salomão.
O livro do professor Julio de Sá – fonte consultada desta reportagem – pode ser lido, na sua íntegra aqui.