Em tempos de doença e morte, um livro para invocar a cura e sonhar um futuro de vida

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Cinquenta cartas, um objetivo: inventar um “porvir do bem viver” – um sonho tão necessário em tempos de desalento e morte, em que a barbárie parece rondar o Brasil e o mundo. Essa é a proposta da coletânea “Cartas para o Bem Viver”, organizada pela professora do Instituto de Letras da UFBA Suzane Lima Costa e pelo doutorando em Ciências Sociais pela UFBA Rafael Xucuru-Kiriri. A live de lançamento reuniu nomes como Ailton Krenak e Ângela Mendes, autores de duas das cartas que compõem a obra, no dia 21 de abril, no canal no Youtube da livraria Boto Cor de Rosa, com mediação da professora do Instituto de Letras Milena Britto.

“Este é um livro de cartas e de urgências. Uma coletânea de cartas-urgentes para falar, estar ou inventar um porvir do bem viver entre nós”, definem os organizadores da obra na sua apresentação. A livro traz cartas escritas por indígenas, antropólogos, filósofos, ativistas, professores e outros atores sociais. Assinam as cartas nomes como Sônia Guajajara, Graça Graúna, Tim Ingold, Taquari Pataxó, Márcia Kambeba, Bianca Dias, Juvenal Payayá, Stephanie Pujól, Nego Bispo, entre outros.

A professora Suzane explica que as mensagens reunidas no livro tratam do viver em diferentes perspectivas, com cartas que falam com o tempo, com o futuro, com familiares etc. Destacou a parte imagética em diversas delas, como na carta de Denilson Baniwa e Leonardo França. “As cartas têm um texto que te chama para sentar perto”, disse.

O líder indígena Ailton Krenak, premiado como intelectual do ano em 2020 pela União Brasileira de Escritores, assina a primeira carta do livro, que convoca “quem quer cantar e dançar para o céu”. “Isso é cura. A gente está precisando de cura”, disse durante a live.

“Nossos ancestrais cantaram para suspender o céu. Com esse canto, a cura também chega. Esse é um dos poderes que nossos ancestrais nos passaram: uma prática de comunhão da terra com o céu, por isso a terra é a nossa mãe”, escreve na carta Krenak, que acrescenta: “A poética expressa nessa imagem de mãe-terra pode até ser ingênua para alguns, mas ser filho da terra é aprender que estamos em relação com todos os outros seres sagrados que constituem o mundo”.

“A carta tem esse dom de nos fazer sentir ligados, relacionados com o mundo”, observa Krenak, que falou sobre a sua experiência com o isolamento social durante a pandemia e revelou sentir falta do contato humano. O escritor considera que as cartas, escritas durante o ano de 2020, trazem visões de cada um nessa condição de isolamento e refletem sobre questões muito sensíveis e importantes e “que dizem respeito à urgência do tempo em suspensão que a gente está passando”.

“Somos sempre capazes de inventar uma melhor maneira de resolver aquilo que se configura como obstáculo, ameaça, conflito”, constata ele, que acrescenta: “Também, nos momentos de trégua, somos capazes de cultivar os jardins que tornem, de verdade, a experiência cotidiana um enriquecimento do ser. Para além de a gente produzir coisas, o mundo de fazer coisas, a gente se volta para o mundo de realizar sentidos. Eu acredito que as cartas vão provocar esse sentimento naqueles que vão receber essas cartas”.

“As cartas vão ventilar novas ideias e poéticas sobre o mundo que está aí”, afirmou ele, comentando também sobre a sua convivência e aprendizado com as diferentes gerações de pessoas, algumas que “fizeram a sua jornada e foram habitar aquele mundo dos encantados” e “deixaram o seu testemunho de vida como uma trilha para a gente poder se orientar aqui, poder se guiar aqui no mundo”, disse ele, revelando contentamento ao notar um movimento de evocação dos sentidos de ancestralidade e identidade.

Krenak falou sobre a possibilidade de sonhar e imaginar mundos que ainda não existem, no sentido de se viver melhor com mundo e com todos os outros seres. E lembrou o exemplo de Chico Mendes, ativista ambiental que acreditou e lutou por um outro futuro possível, ao ponto de escrever uma carta para a juventude do ano de 2120. Para Krenak, Chico Mendes antecipou a ideia de território como lugar da experiência de bem viver, liderando as iniciativas para fundação das reservas extrativistas.

A visão do ativista, considera Krenak, contribuiu para que as comunidades pudessem se constituir dentro da floresta e fora da pressão dos centros urbanos, que concentram também pobreza e tanta gente vivendo nas ruas. “Essas pessoas estão nas ruas não só porque estamos vivendo a pandemia, mas também porque foram enxotadas de seus territórios”, denunciou, reafirmando os territórios dos povos originários como um direito inalienável.

“O bem viver é uma produção. Ele não é alguma coisa que está pronta para a gente se apropriar (…) Ele vai exigir doação também de cada um, para que ao nosso redor o mundo seja colaborativo, acolhedor e que estimule a criação de vida”, finalizou.

Suzane Lima Costa escreve sua carta para “quem ainda escreve cartas”. “Me voltei para pensar um pouco sobre o que é o gesto de escrever cartas”. Costa, que coordena o projeto de pesquisa financiado pelo CNPq “As cartas dos povos indígenas ao Brasil”, compartilhou sua vontade de responder às mensagens que leu dentre as muitas cartas de indígenas pesquisadas – mais de mil no total.

A pesquisadora considera que a pandemia fez com que muitos experimentassem o que é sentir a sua vida ameaçada a todo o momento, sentimento comum aos indígenas e outras minorias. De acordo com ela, os indígenas têm o hábito de escrever cartas após enfrentamentos, lutas, vivências de situações de quase morte e assassinatos decorrentes dos conflitos de terra e grandes manifestações. A própria ideia do livro, segundo a sua idealizadora, surge como uma reação a tudo isso em forma de palavras e utopias. Um círculo de conversa com a participação de todos os autores das cartas acontecerá a partir do mês de maio, no canal no Youtube.

“O principal sentimento é o de gratidão”, disse o doutorando Rafael Xucuru-Kiriri sobre o livro, em que escreve uma carta direcionada ao seu filho pequeno que ainda não pode lê-la. Ele acredita que as cartas são uma oportunidade de estabelecer trocas e considera que livro permite conhecer como diferentes pessoas, dentre um amplo hall de autores, estavam significando o seu bem viver, com microarranjos e macroarranjos, dizendo, em um momento de ameaça à vida, as suas propostas de como ter uma boa vida, “principalmente quando ela está em suspensão como neste momento que a gente vive”.

Rafael Xucuru-Kiriri, que é cientista político, doutorando em Ciências Sociais pela UFBA e analista de Políticas Sociais do Ministério da Educação, lida com a dureza de acompanhar os dados e notícias relacionadas à pandemia. Aproveitou a oportunidade das cartas  para escrever sobre sutilezas, procurando dialogar como o seu filho e transmitir a sua ancestralidade que, segundo ele, dá conta de um bem viver que está relacionado a coisas simples, como um toque, um abraço, uma confraternização. Para os povos indígenas, essa busca pelo bem viver envolve a luta para ter um nome que tem a ver com a sua ancestralidade. Na carta, Rafael conta sobre o processo de escolha do nome de seu filho, Apoena, e as dificuldades para fazer o seu registro no cartório. “Para os povos indígenas, o bem viver é ter um nome nos registros oficiais no Brasil”, disse.

“O Bem Viver é, principalmente para nós, um ato de construção diária diante de uma sociedade que insiste em nos negar a própria existência”, afirma na carta. “Registrar o seu nome, Benjamim Apoena, como pertencente ao povo Xucuru-Kiriri, é contar a história no Brasil. Como lhe disse, um nome nos diz muito”, complementa.

Uma carta para Chico Mendes

A carta de Ângela Mendes é escrita para Chico Mendes, seu pai, ativista ambiental, líder seringueiro e sindicalista, que lutou pela preservação da Amazônia e denunciava a destruição da floresta e o massacre dos povos indígenas. Chico foi assassinado em 1988, na sua casa em Xapuri, no Acre, por grupos criminosos que desmatavam a região.

“Sim, meu pai, a luta é grande, precisamos libertar o mundo da ideia de progresso e desenvolvimento que temos hoje e que tanto nos faz mal, que dizima os recursos naturais e maltrata o espírito do homem e da natureza”, diz na mensagem.

“Essa carta é para mim  também um momento de reencontro, com toda essa necessidade que trago de estar conversando e aprendendo mais sobre o Chico”, declarou ela, que coordena o Comitê Chico Mendes

Essa experiência a fez voltar às suas raízes e mexeu com o seu emocional, como lembrou Angela, que disse ter vivido muito da relação com o seu pai através das cartas, dos livros e do que a família e os amigos falavam sobre ele. “Tivemos separados por muito tempo fisicamente”.

“Na verdade, pai, eu acho que aprendi mais sobre você do que com você, porque tivemos tão pouco tempo para a gente se reconectar, que depois que você se foi, bem depois, passado os traumas e dores, eu fui me aproximando dos teus companheiros e companheiras de luta e iniciei um intenso aprendizado sobre quem foi você”, diz um trecho da carta.

Chico Mendes também escrevia muitas cartas, conforme ressaltou ela. “Escreveu cartas para presidente da república, para ministro da Justiça, falando das ameaças que ele sofria”.

Angela afirmou ter construído o seu próprio caminho com essas lembranças, com tudo o que aprendeu e traz em sua história. Falou sobre o projeto seringueiro criado por Mendes e a ideia das reservas extrativistas, defendendo a consolidação dos territórios de uso comum como um dos fatores fundamentais para o Bem Viver. E enfatizou a relação intrínseca dos indígenas com a natureza e o seu território. “Eles são a própria natureza”.
Na carta, ela lembra a atuação de Chico Mendes para a criação “União dos Povos da Floresta”, agregando à luta pela preservação ambiental indígenas, populações ribeirinhas, pescadores, castanheiros e seringueiros.

“Para essas populações, ter um território consolidado é tranquilidade. A pessoa ter a garantia de que não será expulsa de casa é uma forma de encarar a vida com otimismo, de achar que tudo pode vir a dar certo, que poderá produzir no seu território, junto com a sua família”, disse Ângela durante o evento virtual. Ela também defendeu a garantia de políticas públicas voltadas para essas populações e segue acreditando no poder transformador da educação.

A ativista apontou que o capitalismo, com o consumismo e imediatismo, tem levado a sociedade “à beira do abismo”. “A sociedade foi construída ao longo de todo esse tempo nos distanciando uns dos outros e da própria natureza, como se ela fosse uma coisa e nós fôssemos outra”.

De acordo com a coordenadora do Comitê Chico Mendes, além de escancarar as desigualdades e injustiças no mundo, a pandemia mostrou como atitudes individuais, de pessoas que se aglomeram em festas, por exemplo, têm demonstrado a falta de preocupação com o coletivo. “As necessidades do mundo estão postas. A gente precisa escolher um lado”, afirmou, enfatizando: “A gente não pode deixar de reconhecer o nosso compromisso com o que está acontecendo”.

“Esse mundo, como está, não é possível”, avalia Ângela, que observa que a sociedade atual, em que algumas poucas pessoas se deram bem e outras tantas estão vulnerabilizadas, não é capaz de prover o bem viver. Ela defende buscar um outro mundo, com a superação das desigualdades sociais, respeito pelos animais e por todos os seres vivos, algo que parece tão distante da realidade vigente. “É uma distância cósmica. Enorme”.

“O momento é agora”, disse ela, fazendo referência a uma carta escrita por seu pai para os jovens do futuro, convocando para a celebração de uma revolução socialista a ser feita. Ângela disse acreditar nas novas gerações e movimentos de jovens que estão em luta com ações revolucionárias. Citou o exemplo da ativista Greta Thunberg que, conforme destacou, tem se colocado diretamente contra o sistema atual.

“É muito bonito de se ver como a juventude tem percebido que o mundo precisa mudar”, observa ela, que espera ver essa mudança no Brasil, que foi colonizado e escravizado há 500, em um um padrão capitalista. “Bem viver é um chamado a escrever um livro, a fazer uma poesia, a dançar pro sol e pra lua e a fazer uma revolução, cuja única arma é a fome por justiça social”, concluiu.

Um comentário em “Em tempos de doença e morte, um livro para invocar a cura e sonhar um futuro de vida

  1. Parabéns aos organizadores do Projeto,
    Parabéns para você Suzane Lima Costa, pessoa linda, meiga, simples, e para o seu Companheiro Rafa, parabéns para Ângela, tenho certeza que o Chico está muito feliz, para ele e tantos outros, o meu desejo é que a Grande luz, brilhe para ele.

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