Grupo da FFCH lança portal que abriga acervo documental sobre o Dois de Julho

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Portal2deJulho

Home page do Portal 2 de Julho, acessível em http://www.portal2dejulho.ffch.ufba.br/

A visão de uma celebração da data do Dois de Julho, quando se comemora a Independência da Bahia, que avance para além do aspecto festivo, revelando também a sua face múltipla, plural, interdisciplinar e inclusiva é a proposta do Portal 2 de Julho. Já no ar, o site disponibiliza um significativo acervo de documentos, fotos, vídeos, matérias de jornais, palestras e bibliografia que, ao tempo em que estimula o acesso dos estudantes e pesquisadores do sistema público e privado de ensino, alarga o espaço de reflexão evento na história da Bahia e do país. O perfil indisciplinar do conteúdo, sob guarda e curadoria de um grupo da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da UFBA, ajuda a transpor limites entre as áreas de história e antropologia.

Para o criador do portal, o professor titular de antropologia da UFBA Jocélio Teles dos Santos, “na compreensão desse evento e em sua reinterpretação política e afrorreligiosa é que apontamos a necessidade de um exercício analítico interdisciplinar. Elementar afirmar que a relação entre as disciplinas história e antropologia já foi muito lembrada, reivindicada e exercitada nas referidas áreas”. E continua: “Por outro lado, fenômenos ou fatos considerados de conteúdo estritamente político passaram a ser observados na sua dimensão simbólica e também ritual.”

Ainda de acordo com Teles, o portal também visa a ser um instrumento de informação que ajude o estudante a, por exemplo, compreender as comemorações da data para além “da Festa do Caboclo e da Cabocla”. “É provável que esse sentimento de que a Bahia é uma nação, tão propagado a partir dos anos 60 do século XX por intelectuais, governos municipais e estaduais, artistas, mídia e imprensa, seja a coroação de um processo iniciado cem anos antes, via o 2 de Julho”, disse o professor, em entrevista à repórter Cleidiana Ramos, do jornal A Tarde.

Ao Edgardigital, o antropólogo afirmou que muitos historiadores já escreveram sobre o processo da Independência e o desfile comemorativo. Agora, “o portal foi pensado como uma ferramenta para estimular estudantes da rede pública e privada, jovens pesquisadores, universitários, a terem acesso ao que chamamos de repertório de fontes sobre a Independência da Bahia e a comemoração do Dois de Julho. Afinal de contas, o desfile é um acontecimento único na história da Bahia e do país que os baianos reiteramos anualmente”. Trata-se, afirma Teles, de “um fenômeno polissêmico que merece ser cada vez mais pensado, refletido, interpretado”. É com esse propósito, ele explica, que estão sendo disponibilizadas matérias de jornais, documentos, atas, fotos do desfile, referências bibliográficas, e vídeos. “O portal está abrigado em domínio ufba.br e esperamos que tenha vida longa, atravessando gerações. Como foi resultado de pesquisa financiada pelo CNPq, atualizações sempre dependem de novos recursos”, observa.

O projeto do portal começou em 2018, coordenado pelo professor Jocélio e com a co-coordenação da professora Wlamyra Albuquerque, do Departamento de História da UFBA. A iniciativa teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para a construção do portal e para as bolsas dos quatro estudantes que pesquisaram e catalogaram matérias de jornais do século XIX a XXI, atas, poesias e manuscritos na Biblioteca Nacional, Biblioteca Central do Estado da Bahia, Arquivo Público do Estado da Bahia, Centro de Digitalização-Cedig, Fundação Pedro Calmon, Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Museu de Arte da Bahia, e na Biblioteca Virtual Consuelo Pondé. As fotografias foram disponibilizadas pelo Arquivo Histórico Municipal de Salvador. O desenvolvimento do sistema web foi realizado pelo webdesigner Luciano Nascimento.

Trabalho dos bolsistas

A bolsista Marcele Moreira. (Foto: Arquivo pessoal)

Para a bolsista Marcele Moreira, graduada do curso de história, que participou da pesquisa de documentos para a construção do portal, “dependendo das palavras utilizadas e dos filtros aplicados durante a pesquisa, as fontes reluzem. É literalmente um trabalho que muito se assemelha ao do garimpo”. A bolsista afirma que “é preciso ter tranquilidade, foco, atenção para não perder de vista as fontes que saltam aos olhos, como o ouro de aluvião, ou aquelas que exigem do pesquisador que adentrem um pouco mais na mina.”

Para Marcele, um momento crucial para o andamento da pesquisa e desenvolvimento do projeto foi quando o grupo foi às ruas, em pleno evento destinado às comemorações do 2 de Julho, que ocorre todos os anos desde 1824. “No ano de 2019, estivemos, além de coletando depoimentos, fazendo registros, ‘vivendo’ a história. Fomos às ruas acompanhar o desfile, a festa, a movimentação popular, a devoção religiosa, a participação de grupos políticos (…).”

A pesquisadora explica que “todos os documentos reunidos deveriam ser alocados e disponibilizados no site do Portal 2 de Julho desenvolvido pelo projeto. Foram por mim inseridos, identificados e catalogados mais de 1.500 arquivos. Assim, de modo privilegiado, pude entender o site com o olhar da tecnologia da informação, o que foi importante para realização de ajustes necessários para o melhor desempenho e funcionalidade do Portal”.

Foto: Mona Lisa, bolsista

A bolsista Mona Lisa, mestranda em história social do Brasil pela UFBA, também participou da pesquisa, “percorrendo (…) as trilhas da festa do Dois de Julho, mapeando suas engrenagens, suas continuidades e rupturas desta festança popular que atravessou séculos, carregando sonhos e esperanças de liberdade”. Interessada em “tentar localizar novas fontes [e sujeitos] e pensar diferentes interpretações de um tema já tão pesquisado e debatido como o 2 de Julho”, ela conta que sua estratégia inicial foi “procurar exaustivamente notícias sobre os festejos em conjuntos documentais menos óbvios”.

Enfrentando “o risco de chegar aos mesmos lugares”, Mona Lisa conta que “todo esse esforço era recompensado a cada sujeito novo que aparecia relacionado de forma direta ou indireta a festa”. Exemplo disso, diz ela, “foi o caso de uma portaria expedida pela Câmara Municipal de Salvador na década de 1850, autorizando que africanos livres fossem incumbidos de varrerem as ruas para passar o desfile do 2 de Julho”.

Além de Mona Lisa Nunes e Marcele Moreira também pesquisaram para o Portal 2 de Julho Ingrid Leoni e Renê Salomão.

Evento múltiplo

Diversos vídeos sobre o desfile estão à disposição do internauta entre os documentos do portal, como o que mostra a relação dos adeptos das casas de santo com os carros emblemáticos do Caboclo e da Cabocla – veja aqui. Outro vídeo registra a participação das balizas LGBTQIA+ no desfile das bandas de colégios. Os vídeos foram produzidos por Cleidiana Ramos, Cláudio Rodolfo e Susana Rebouças.

Sobre essas manifestações seculares no espaço público, o professor Jocélio Teles explica que “O Dois de Julho pode ser visto como um evento de caráter múltiplo, pois se estende aos terreiros de candomblé, já que muitos realizam festas para os ‘verdadeiros donos da terra – os caboclos’. Ali se encontram reinterpretações e práticas no universo afrorreligioso baiano com a manifestação de entidades vistas como indígenas que resistiram à dominação de origem portuguesa”.

E não somente nos terreiros. “Ao final do desfile pela manhã – continua o professor -, na Praça Municipal, e durante à tarde e nos dias seguintes, na Praça do Campo Grande, há depósito de bilhetes e cartas nos carros alegóricos do Caboclo e da Cabocla requerendo benefícios espirituais e materiais. E muitos fazem pedidos e orações tocando nas imagens ou nos carros dos Caboclos”.

Jocélio Teles lembra ainda a participação das organizações não governamentais, dos movimentos sociais populares e de entidades da sociedade civil, além dos políticos e de representantes de partidos políticos que ocupam o espaço do desfile. “O desfile das bandas e suas balizas LGBTQIA+, no período da tarde, aponta também nessa direção. Confesso que nesse momento já não dou conta da pluralidade das disputas durante o desfile. O interessante é pensar que a simbologia ali presente é apropriada nas mais variadas formas. Tudo isso envolve um cortejo marcado por sujeitos e organizações que vão da macro a micropolítica”, disse à jornalista Cleidiana Ramos, em A Tarde.

O desfile pós-pandemia

O Edgardigital quis saber do professor Jocélio como ele imagina, hoje, o desfile do Dois de Julho na próxima década. “É provável que nos próximos anos tenhamos comemorações presenciais, ‘em carne e osso’, e que continuem [ocorrendo] as virtuais. Quem sabe não estaremos diante de um modelo híbrido de saudações e vivas aos Caboclos, disputas do espaço público por sujeitos e entidades das mais diversas, algo que é secular, acrescido de entrevistas e lives, similares às que ocorreram em 2020 e 2021. A pandemia trouxe essa alternativa, e a importância do Dois de Julho para os baianos é tão significativa que, em 2020 e 2021, nós não ficamos insatisfeitos e ‘fomos chorar no pé do Caboclo’, muito pelo contrário. A expressão secular ‘tocar o carro pra Lapinha’, no sentido de algo precisa ser feito, foi atualizada e está na ordem do dia.”

 

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