
Sede da Academia de Letras da Bahia, Palacete Góes Calmon tem tombamento encaminhado pela entidade.
A cultura como fim e a economia como meio, como propôs o economista Celso Furtado (1920-2004), para quem uma política de desenvolvimento tem que ser posta a serviço do enriquecimento cultural; e uma proposta de “paisagem cultural humanizada”, como ideia de patrimônio que funde os conceitos de natureza e cultura, a serviço de suas conservações, foram as questões centrais do debate entre o professor do Ihac e vice-reitor da UFBA Paulo Miguez e o professor da Faculdade de Arquitetura e membro da Academia de Letras da Bahia (ALB) Paulo Ormindo de Azevedo na reunião da Academia no dia 09 de setembro, em torno do tópico “Cultura e Desenvolvimento: o lugar do patrimônio”.
Em uma divisão espontânea do tema da noite, Miguez falou sobre “cultura e desenvolvimento”, enquanto Ormindo fez um retrospecto histórico sobre o “lugar do patrimônio” nacional, na live transmitida no canal da Academia no Youtube. A sessão foi aberta pelo presidente da entidade, o professor de antropologia da UFBA Ordep Serra. Assunto em evidência no noticiário recente, o “destombamento” da Residência Universitária 1 da UFBA, no corredor da Vitória, três dias depois de ser tombada pela Prefeitura Municipal do Salvador, também foi assunto de destaque.
Paulo Miguez iniciou afirmando que a Universidade é um equipamento da cultura, e que a cultura, como um todo, vem sendo agredida e desrespeitada em uma de suas dimensões mais importantes, a do patrimônio. “Tanto o patrimônio imaterial, tão desrespeitado ao longo dos anos, como também o patrimônio de pedra e cal. É o descaso que fez com o que o Museu Nacional ardesse no Rio de Janeiro (…) e que um incêndio consumisse, recentemente, parte do acervo da Cinemateca Brasileira, em São Paulo”, exemplifica o vice-reitor.
“Assistimos há pouco – continua – e eu não posso deixar de registrar aqui o espanto, a estranheza com que a Universidade Federal da Bahia recebeu a informação do destombamento da nossa casa, a Residência Estudantil 1, na Vitoria. Fomos surpreendidos, três dias depois do tombamento, com um decreto, pasmem pelo incomum que ele é, um decreto de destombamento de um bem. Esquece a prefeitura que a Vitoria é efetivamente um bairro nobre porque ali está situada uma casa da instituição mais nobre dessa cidade, que é a Universidade Federal da Bahia. Eles confundem nobreza com riqueza. Nobreza é o bairro da Vitoria porque nós estamos ali”, afirmou Miguez.
O vice-reitor declarou que é cada vez mais evidente para ele que a cultura ocupa, nesse momento, um lugar singular e relevante na contemporaneidade, “o lugar de uma centralidade marcada por uma transversalidade muito acentuada, o que torna perceptivo que [a cultura] vai transbordando as fronteiras do cultural propriamente dito, e vai se infiltrando em outras dimensões da vida em sociedade, estabelecendo enlaces e conjunções e se impondo, em alguns casos, como uma questão central do debate”.
“É preciso que agente compreenda a cultura enquanto uma dimensão consecutiva da vida social e como uma usina geradora de riqueza simbólica. Aí o desafio é que o desenvolvimento possa afirmar simultaneamente a necessidade de proteção e promoção da diversidade cultural e o reconhecimento das identidades, e a criação de mecanismos que possibilitem que as riquezas simbólicas possam ser transformadas em riquezas matérias”, explicou Miguez.
Na opinião do pesquisador da cultura, hoje o “enlace chave” parece ser a relação entre cultura e economia, que pode ser vista de duas perspectivas: uma é a da mercantilização da cultura, por conta da invenção dos meios de reprodução da imagem e do som, chegando a formar, o que é hoje, o mercado global de bens e serviços simbólicos e culturais.
“A outra dimensão – continua Miguez – é a culturalização da mercadoria, fortemente presente na circunstância contemporânea, ou seja, cada vez mais as mercadorias têm seus aspectos estritamente físicos e técnicos secundarizados, e cada vez mais crescem, na definição do preço daquela mercadoria, os elementos simbólicos que dão forma a ela” – quais sejam a marca, o nome, o estilo.
Adiante, Miguez sugere que acompanhemos o economista Celso Furtado quando define “a economia como meio e a cultura como fim. Para o economista, uma política de desenvolvimento tem que ser posta a serviço do enriquecimento cultural”.
Visão histórica
O professor Paulo Ormindo, por sua vez, fez uma minuciosa explanação através da história do Patrimônio Nacional, começando pela década de 1930, que, para ele, segue um “projeto conservador, de união nacional, em torno de símbolos da elite dominante bancado por estados fortes”.
Ormindo pôs em discussão a fundação do SPHAN (órgão de proteção do patrimônio nacional que antecedeu o atual IPHAN), em 1937, que, segundo ele, nasce de uma iniciativa do ministro da Educação Gustavo Capanema, projetado pelo escritor Mário de Andrade, “muito avançado do ponto de vista sócio-cultural para o Estado”. Na segunda metade da década de 1940, continua Ormindo, começam as relações entre patrimônio e economia: “o patrimônio é a fonte de divisa para a reconstrução dos países que sofreram a Segunda Guerra Mundial, como a Itália, a França, um pouco mais posteriormente a Iugoslava e a Espanha.”
“Mas, por ora, todos esses são projetos nacionais”, alerta Ormindo. “Na década de 1960, há uma expansão mundial do turismo com a facilidade das viagens internacionais de avião e uma internacionalização do patrimônio cultural.” Com a primeira norma internacional, que é a carta de Veneza, estabelecem-se, então, princípios para discutir um patrimônio que já é muito mais universal do que nacional. Nesse momento, a Unesco adota o turismo cultural, salientou.
Ormindo chama a atenção ainda para o que ele define como “a revolução silenciosa” que Renato Soeiro faz entre 1967 e1979, quando na direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Soeiro foi um dos autores das normas de títulos, que expandem a proteção do patrimônio aos estados e municípios, criando uma rede nacional de entidades de proteção. Mais adiante, o professor se refere à criação Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste – PCH – com sua utilização para o turismo.
Sobre o patrimônio nacional durante o neoliberalismo, Ormindo observou que, nesse momento, “o PCH é esvaziado” e extinto por Delfim Neto quando foi ministro do Planejamento (1979-85), e substituído pelo Projeto Monumenta, financiado pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que não tinha nenhum objetivo desenvolvimentista, apenas de desenvolvimento do turismo para os atender aos interesses das redes de turismo internacionais”. Questão ainda mais grave, na opinião do professor da Faculdade de Arquitetura, é quando a política cultural é delegada à iniciativa privada, com as leis Sarney (1986) e Rouanet (1991), “ditadas pelo mercado”.
“A luta pela preservação do patrimônio cultural, tão intensa entre as décadas de 1960 e 80 – finaliza Paulo Ormindo – , cede lugar à luta pela preservação do meio ambiente, a partir dos anos 1990, com a conferência Rio 92, outra batalha desigual que enfrentamos até hoje e não vemos como possa ser resolvida (…) Para mim a saída desse problema é a fusão dessas duas lutas sobre o conceito de “paisagem cultural humanizada”, propõe.
Luta pelo tombamento
Na última parte da sessão o presidente Ordep Serra franqueou a palavra para os participantes e o arquiteto Nivaldo Andrade, que hoje coordena um Fórum de Patrimônio Nacional provocou, perguntando “como podemos fazer frente quando os órgãos que deveriam cuidar da preservação do patrimônio em muitas situações não estão fazendo isso?”
O professor Ormindo foi o primeiro a responder, afirmando, entre outras coisas, acredita que “que a força maior para mudar a decisão de um administrador público é a pressão de opinião publica”, sugerindo uma divulgação mais intensa da questão envolvendo a Residência Universitária, na Vitória. E adiante, opinou: “Mas agora nós temos que partir também para uma judicialização”(…) eu acho que ali por trás está o lobby imobiliário da cidade de Salvador, cujo principal produto de venda se chama vista para Bahia de Todos os Santos, praticamente esgotada no corredor da Vitória e na ladeira da Barra.”
Em seguida, o vice-reitor Paulo Miguez reiterou que “nós estamos entrando, sim, na Justiça. Nós fizemos, primeiro, uma interpelação não judicial, [por compreendermos] que há sempre espaço para uma boa conversa antes de se recorrer à Justiça. Mas, infelizmente, nenhum sinal de que interesse nessa conversa foi dado. Então, nós somos obrigados a entrar na Justiça e estamos tomando todos os cuidados nessa direção”.

Residência Universitária, no Corredor da Vitória: todos os cuidados estão sendo tomados
O reitor João Carlos Salles, que acompanhou toda a live, disse, ao final, que considera que a UFBA tem muitos canais de divulgação: tanto os canais oficiais, como “o Edgardigital, os nossos boletins, as nossas notas, etc”; quanto as pessoas preciosas que são a ‘UFBA em Movimento’, como Nivaldo Andrade, Ordep Serra, Paulo Ormindo, Nelson Prieto, Edilene Matos, Cleise Mendes, Evelina Hoisel, Marcus Vinicius e todos aqueles que se manifestam na defesa da nossa Universidade”.
“O que me surpreende – afirmou o reitor – são outras instâncias governamentais, no caso do Estado, que silenciam quando uma causa pública é colocada (…) e mesmo agem através de recados, de argumentos, de instrumentos para, digamos, em certa medida, comprometer o bem comum e, sobretudo, essa dimensão que é a da Cultura. Isso é algo muito grave. As pessoas pensam que estão sendo bons gestores, mas a nossa a terra tem memória. Não vamos esquecer esses gestores que comprometem nosso patrimônio. As pessoas estão escrevendo seu nome de maneira muito torpe na história desse momento”, finalizou o reitor.
Encerrando a sessão, o presidente da ALB, Ordep Serra informou que está sendo pedido o tombamento do Palacete Góes Calmon, onde funciona a Academia de Letras da Bahia, no bairro de Nazaré, tanto na esfera estadual, quanto na esfera municipal, a partir de uma exposição de motivos feita pelo professor e arquiteto Paulo Ormindo, mostrando a importância daquele monumento da arquitetura eclética baiana. Ordep Serra deu por encerrada a sessão, reiterando a solidariedade da Academia de Letras da Bahia à UFBA na questão do destombamento da R1.