Documento de representantes da sociedade civil questiona ações de desmonte do Iphan

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Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, sede do Iphan

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é uma das mais antigas instituições culturais do Brasil. Criado em 1937, como órgão de Estado voltado para a proteção dos direitos na área do patrimônio cultural brasileiro, tem como atribuição zelar pela saúde da memória, da cultura e dos bens que a representam.

Nos últimos três anos, entretanto, de acordo com manifestação de representantes da sociedade civil no Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, tem se verificado um desmonte desse patrimônio e a perda da proteção que se deve exercer sobre os bens culturais. Ao longo deste tempo, eles declaram ainda que “o desmonte foi se transformando em uma perseguição contra aqueles que trabalham em ações de preservação”. Recentemente, lembram, declarações do Presidente da República sobre a instituição mostram de maneira “eloquente”, segundo eles, o modo como o governo vem utilizando instituições de Estado para favorecer interesses pessoais ou privados.

Preocupados com o que vem acontecendo, 12 conselheiros do órgão representantes da sociedade civil – entre eles três professores da UFBA: Luis Alberto Freire, da Escola de Belas Artes, e Márcia Sant’Ana e Nivaldo Vieira de Andrade Jr. , da Faculdade de Arquitetura – assinaram um requerimento dirigido à Presidência do Iphan propondo a realização de uma reunião plenária extraordinária para externar a preocupação diante dessas ações de desmonte e,em seguida, discutir providências no sentido de revertê-las. Sugerem o período entre os dias 7 e 16 de fevereiro próximo para a realização desse encontro, em modo remoto.

Para o professor Nivaldo Andrade, esse ataque coloca em risco não só as políticas públicas implementadas pelo Iphan ao longo desses mais de 80 anos de atuação em defesa do patrimônio cultural brasileiro, mas ameaça também a preservação do nosso patrimônio. Os bens culturais são, segundo ele, de modo geral, bens não renováveis. Ou seja, um sitio arqueológico ou um edifício que seja descaracterizado, que seja destruído, com anuência ou com omissão do Iphan, não vai poder ser recuperado.

“Em pouco tempo – garante o professor – pode ser destruído algo que tem séculos de existência, às vezes milênio, como no caso de um patrimônio arqueológico. O desmonte do Iphan faz parte de uma política federal atual de desmonte da política ambiental e da política de educação pública, que pode gerar prejuízos imensos e irreversíveis”, conclui Nivaldo.

Desmonte da memória

Entre as principais ações de desmonte apontadas pelos conselheiros, o Decreto n° 10.935, de 12 de janeiro de 2022, segundo eles, abre possibilidades de destruição do patrimônio espeleológico e arqueológico, quando rebaixa a ação dos organismos de licenciamento ambiental – o que inclui o Iphan. A identificação de bens arqueológicos torna-se, assim, ainda segundo os representantes da sociedade civil, um procedimento de caráter “automático” e exclusivamente baseada em sítios já georreferenciados, sem a devida avaliação técnica.

Essa e outras mudanças “apontam para o favorecimento a uma exploração predatória do meio ambiente e para uma crescente ameaça ao patrimônio arqueológico e ambiental”, afirma o requerimento enviado à presidência da instituição. Coube ainda destacar pelos signatários que a destruição de patrimônio espeleológico é de máxima relevância, pois é onde, frequentemente, são encontrados bens arqueológicos de grande importância.

Comprometendo as culturas

As práticas acima descritas, continuam os requerentes, afetam ainda os bens culturais que estão ligados aos modos de ser e de viver de populações indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhas, extrativistas, dentre outras, colocando em risco a execução da política de salvaguarda dos bens culturais imateriais.

O modo como os processos de reavaliação da salvaguarda de bens registrados e a revalidação do seu título de Patrimônio Cultural do Brasil têm sido conduzidos pela Diretoria do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI), sem debate qualificado, criticam. E denunciam que “em nome da celeridade desses processos e da diminuição do passivo de casos em andamento aguardando decisão, vêm sendo instauradas nos vários setores da instituição práticas de cunho burocrático e superficial, direcionadas para alcançar metas de cunho quantitativo, entre outras razões, para compensar o tempo que o Conselho Consultivo deixou de ser convocado”.

Museu da República: sem apoio técnico do Iphan 

A retirada do apoio do Iphan à identificação, documentação e exposição das peças e objetos das religiões afro-brasileiras, atualmente sob a guarda do Museu da República, “é deletéria e enfraquecedora da missão institucional do IPHAN”, exemplificam

Quem der mais, leva

A possibilidade de vender qualquer bem público tombado em processo, onde o lance mínimo é definido pelo comprador ameaça o patrimônio arquitetônico brasileiro, destacam no requerimento exemplificando o caso do Palácio Gustavo Capanema – edifício listado como patrimônio da humanidade, ícone da arquitetura moderna brasileira e sede do Iphan – que ainda está em pauta apesar dos protestos dos mais variados segmentos da sociedade nacional, bem como de organizações internacionais. Recentemente, em 31/01/2022, a Justiça Federal concedeu liminar para impedir a venda do prédio.

Sem seleção e sem gestão

As alterações questionáveis e feitas “na surdina” no processo seletivo do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade de 2021; a não realização do processo seletivo anual do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural (PEP-MP), iniciado há 17 anos, bem como a não implementação dos comitês gestores de sítios listados como patrimônio mundial, também foram questões colocadas no documento que se pretende discutir na reunião pedida pelos conselheiros.

Em relação aos comitês gestores os conselheiros destacam que: “além do descumprimento de um compromisso assumido pelo Brasil junto à Unesco, a falta desses comitês prejudica enormemente a gestão desses bens culturais e cerceia a participação popular, colocando em risco os próprios títulos conquistados”.

E acreditam que a não realização do processo seletivo para o Mestrado Profissional faz parte de uma estratégia de minar o órgão com a redução da sua capacidade técnica, “mediante a substituição de servidores competentes e qualificados, que ocupavam postos-chave, por pessoas sem a necessária experiência prévia ou formação profissional adequada para a execução de complexas tarefas de comando e chefia”.

Corte no orçamento

Por fim, mas não menos importante, ainda citam a redução do orçamento destinado ao Iphan como outro indicador da precarização da missão institucional do órgão. Com relação a 2019, a instituição teve, em 2021, uma redução de 33,2 % no seu orçamento, valor correspondente a R$ 171,33 milhões de reais.

Enfraquecer o Iphan, finalizam os pareceristas, “é deixar à deriva a memória do país, sem servidores preparados para buscar as melhores práticas e soluções para o exercício dos direitos culturais de seu povo. Nós, representantes da sociedade civil no Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, vimos a público expressar nossa indignação com essa situação e registrar que permaneceremos atentos, mobilizados e comprometidos com a reversão deste quadro”, garantem.