Eduardo Mota
Já foi dito que a gestão da crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19 no Brasil foi politizada. Porém, considerando os desacertos na condução do combate ao novo coronavírus e suas consequências, já se viu mais politicagem ou má política do que outra coisa. É mais um exemplo recente disso a notícia de que se pretende suspender a situação de emergência de saúde pública, para transformar a pandemia em “endemia” e assim retirar a obrigatoriedade de máscaras e outras medidas protetivas (ver aqui). Este seria só mais um movimento de negacionismo científico se não fosse potencialmente trágico.
Em vigilância epidemiológica, uma doença é considerada endêmica quando tem presença constante em uma área, em geral com frequência relativamente baixa de novos casos, que não ultrapassa o valor esperado para cada mês ou período do ano. Como valor esperado, se toma a incidência média histórica e se admite uma banda de variação padrão. É necessário que este padrão de ocorrência persista por tempo suficiente para que se estabeleça um nível endêmico esperado. Entre as doenças infecciosas, tuberculose, por exemplo, é uma doença endêmica no Brasil. Mas, não há nada na curva da evolução de novos casos e óbitos pela Covid-19 que indique que a pandemia se apresenta atualmente dessa maneira. Ao contrário, a situação ainda é de característica epidêmica e potencialmente explosiva, como se pode observar no gráfico da evolução da média diária de novos casos da doença.
Todavia, a notícia não surpreende mais ninguém. Negou-se a vacina contra a Covid-19 até quando não foi mais possível, e recentemente retardou-se o início da vacinação de crianças até que toda a sociedade pressionasse por seu início imediato. Negou-se insistentemente a necessidade de distanciamento social, assim como a necessidade do uso de máscara. E se negou ainda a falta de evidências científicas para recomendar o uso de medicamentos ineficazes. E se não fossem as fontes fidedignas de informação técnica e científica das universidades e centros de pesquisa, e a disponibilidade dos dados registrados pelos estados e municípios, apontando para a necessidade de vacinação e das medidas protetivas, que a maioria da população entendeu e aderiu, já teríamos vivido uma tragédia sanitária de proporções muito maiores. Diante do que se noticia agora o negacionismo soa como escárnio, porque o que já se registrou na pandemia não é pouco e não tem precedentes.
Até 16 de março de 2022, foram registrados no Brasil 29.478.039 casos confirmados e 655.940 mortes pela Covid-19. A média (7 dias) de novos casos diários naquela data foi de 40.682 com 349 mortes pela doença. Em 31 de outubro de 2021, um pouco antes do início da onda com a variante Ômicron, a África do Sul, origem desta variante que ainda hoje predomina em todo o mundo, tinha média de apenas 355 novos casos diários. Quanto maior o número de novos casos e, portanto, quanto mais intensa a transmissão viral, maior será a probabilidade de que novas variantes ocorram.
A terceira onda da pandemia da Covid-19 ainda não passou no Brasil. A tendência geral da curva de novos casos e óbitos é de descenso, mas o ritmo de descenso diminuiu nas últimas semanas. Com efeito, o total de novos casos registrados na semana epidemiológica 10 (6 a 12/3/2022), de 317.082, foi 9,7% maior do que o total registrado na semana 9 (27/02 a 5/3/2022) de 289.002 novos casos, aumento atribuído as festividades de carnaval, ainda que tenham sido bem menores do que no passado. Isto aponta para a instabilidade da situação, que pode se reverter rapidamente tão logo se abandonem as medidas protetivas. Afinal, vale a lembrança do que ocorreu no final do ano passado, quando, em 17 de dezembro, se registrou média diária de 3.507 novos casos e, às vésperas do Natal, se falava em “fim da pandemia”. Logo em seguida, experimentamos a terceira onda com a variante Ômicron, ainda mais explosiva, e que estamos enfrentando até o momento.
Nem mesmo foi alcançado o nível de incidência que se registrou no início da onda atual. Na primeira semana epidemiológica deste ano (2 a 8 de janeiro), quando já se desenvolvia a onda da variante Ômicron, a média diária de novos casos era de 29.717 e de óbitos era 119, respectivamente, 27,0% e 65,9% menores do que as médias de casos e óbitos atuais. Antes de alcançar esses patamares, não se pode afirmar que ficamos livres da nova onda Ômicron, nem que tenha sido atingido qualquer nível que pudesse ser considerado como endêmico. E isto reforça a importância de que todos sejam vacinados e que se mantenham as medidas sanitárias específicas, individuais e coletivas.
Mas não é só isto. Em alguns países, a variante Ômicron tem representando um desafio excepcional ao controle da progressão da pandemia. Países como Nova Zelândia, Alemanha, Austrália, França, Portugal, Itália e Reino Unido têm experimentado recrudescimento do número de novos casos a partir do início do mês corrente. A Coreia do Sul tem apresentado um quadro de explosão de casos, ainda maior em número de novos casos por milhão de habitantes do que se observou em Portugal e na França no pico da onda atual da pandemia. Nesses países, onde a predominância da variante Ômicron é quase total, a cobertura vacinal com dose de reforço contra a Covid-19 varia atualmente entre 47,9% na Australia e 63,5% na Itália. No Brasil, a cobertura com dose de reforço alcançou 33,5% da população em 16 de março de 2022.
Dessa maneira, com coberturas vacinais que ainda não alcançaram 95% ou mais da população alvo com vacinação completa, se trata aqui de considerar que o contingente de população suscetível à infecção pelo vírus SARS-CoV-2 ainda é suficientemente grande para dar início a uma nova onda da pandemia, seja com uma nova variante ou não. Ainda pior se as medidas protetivas gerais de distanciamento, uso de máscara e lavagem frequente das mãos forem suprimidas e se a vacinação não progredir mais rapidamente. Afinal, devemos à vacinação, como medida de proteção individual e principalmente coletiva, uma menor frequência de casos de maior gravidade, com a redução de internações hospitalares em UTI e menor letalidade pela doença que se observa na onda atual da pandemia.
Em publicação de 16 de março de 2022, o Observatório Covid-19 da Fiocruz divulgou uma Nota Técnica tratando dos diferenciais de cobertura vacinal por grupos etários. No documento, há trechos que se apresentam a seguir que chamam a atenção para a necessidade de ampliar a cobertura vacinal e manter as demais medidas de proteção: “As idades abaixo de 29 anos são as únicas com cobertura vacinal de esquema completo abaixo de 80%. Uma vez que a população brasileira ainda possui um grande volume de pessoas nesta faixa etária, a baixa cobertura concentrada nestas idades acaba influenciando diretamente a cobertura total, e por esta razão consideramos importante olhar de forma diferenciada este grupo”. Em outro trecho, se lê: “A experiência de outros países que flexibilizaram o uso de máscaras em cenários de cobertura vacinal abaixo de 90% pode servir de alerta para que o Brasil não incorra no mesmo erro”. E em conclusão, se lê: “Finalmente, o sucesso das medidas de enfrentamento contra a Covid-19 só se torna evidentes quando um potencializa os demais. Não é razoável pensar que se trata de uma escolha, entre vacinar ou usar máscaras, ou entre usar máscaras ou estar exclusivamente em ambientes abertos. Todos os recursos disponíveis para impedir a circulação do vírus devem ser tomados de forma concomitante. Portanto, estimular o aumento da cobertura vacinal não exclui as demais estratégias de proteção, sejam individuais ou coletivas”.
Alertas competentes como este deveriam ser suficientes para orientar as decisões necessárias à gestão da crise sanitária que ainda atravessamos. Esperamos que sejam considerados.
17 de março de 2022
*Eduardo Mota é epidemiologista, professor do Instituto de Saúde Coletiva e coordenador do Comitê de Assessoramento da Covid-19 na UFBA.
Fontes de dados e informações disponíveis em:
FIOCRUZ. Nota Técnica – Observatório Covid-19 – Fiocruz. Diferenciais de Cobertura Vacinal segundo Grupos Etários no Brasil, 16/3/2021. Disponível em:
Ministério da Saúde, em:
https://ourworldindata.org/coronavirus