Pesquisadores da UFBA constatam desinformação relacionada à gestão da pandemia em grupos do Telegram

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O Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia esteve à frente da pesquisa.

O estudo da arquitetura da comunicação de um dos aplicativos de mensagens mais usados no Brasil mostra como o país vem se consolidado como exemplo negativo para a gestão da crise sanitária na pandemia. As constatações de disseminação de desinformação e posicionamentos controversos marcam os achados da pesquisa “Ecossistema de Desinformação e Propaganda Computacional do Telegram”, realizada por pesquisadores do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (LABHDUFBA), em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e colaboradores da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Universidade Manchester e Universidade Nova de Lisboa.

Apesar de a pesquisa ter ficado conhecida pelos achados relacionados a publicações neonazistas e antivacina, o professor do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICTI) do campus da UFBA em Camaçari e coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA, Leonardo Nascimento, esclarece que “não é uma pesquisa necessariamente sobre vacinas. O objetivo não é, propriamente, neonazismo ou vacina”.

Trata-se, segundo Nascimento, de “um estudo sobre informação e desinformação com focos múltiplos. Estamos interessados, de maneira geral, no tema desinformação que, muitas vezes, é atravessado por diversos outros temas, como temas políticos, de saúde, econômicos, religiosos e etc. Então, tem muita coisa envolvida. Existe uma narrativa complexa por trás dos processos de desinformação que estamos tentando perceber”, explicou o docente.

De acordo com o pesquisador, a motivação para o projeto nasceu de um estudo prévio que ele já fazia com o professor Paulo Fonseca, que também atua no campus da UFBA em Camaçari. “Começamos a investigar tudo sobre a cloroquina no Telegram e, paralelamente a isso, a professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Letícia Cesarino – que hoje, é, também, nossa parceira – já desenvolvia uma pesquisa sobre o WhatsApp, focalizando as eleições de 2018”.

O estudo, que vem alcançando relevância por ser realizado no ambiente do Telegram, tem considerações publicadas no artigo “Poder oracular e ecossistemas digitais de comunicação: a produção de zonas de ignorância durante a pandemia de Covid-19 no Brasil” e foi financiado integralmente pelo Internet Lab – centro independente de pesquisa interdisciplinar que promove o debate acadêmico.

“Nós participamos de uma seleção nacional com proposta de pesquisa sobre desinformação e propaganda computacional, então fomos selecionados. Após o término da primeira fase, eles gostaram muito do trabalho e resolveram dar continuidade ao que estávamos fazendo antes, só que agora, tendo como foco a eleição de 2022”, contou Nascimento.

Recentemente, após o financiamento do Internet Lab, “nós também recebemos um apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para estudos sobre Desinformação em Saúde, no processo: 409403/2021-0 – Chamada CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021 – Faixa A – Grupos Emergentes , informou o professor.

Métodos mistos com adequações ao Telegram

Características do Telegram

O app Telegram possui características que o tornam mais atraente aos pesquisadores.

“O aplicativo Telegram foi escolhido por um motivo: é uma plataforma, ao mesmo tempo, ambígua e híbrida”, afirmou o professor Leonardo Nascimento. “A ambiguidade é porque, embora o Telegram ofereça um conjunto de ferramentas (chats privados, criptografados, grupos ocultos, grupos e chats secretos com poder de autodestruição) para ocultar e proteger os usuários, ele tem uma estrutura, arquitetura algorítmica que facilita a pesquisa dessas mesmas mensagens”.

“Por isso, a ambiguidade: ele permite o oculto e o revelado”, explicou acentuando que “o Telegram parece que permite aos usuários ocultar mais, mas paradoxalmente, para pesquisadores é melhor para pesquisar, pois através da arquitetura dele, é possível acessar as mensagens de maneira computacional e automatizada”.

Por ser uma plataforma híbrida, “o Telegram é, ao mesmo tempo, um chat de mensagens – como o WhatsApp, em que todos podem enviar mensagens – e uma plataforma de rede social, porque com os canais, é possível enviar mensagens para um número infinito de pessoas que podem recebê-las. Esse hibridismo é que torna a plataforma muito mais interessante para os pesquisadores”, considera.

Um outro motivo apontado por Nascimento é que diversos grupos políticos passaram a migrar paraessa rede. Consequentemente, muitos grupos de desinformação migraram ´[para a plataforma] e [isso resultou em] um crescimento exponencial no Brasil, calcula o professor.

Como os atuais estudos científicos dos ambientes das redes sociais digitais acontecem, praticamente, ao mesmo tempo em que as mensagens são publicadas, ainda não há modelos metodológicos estabelecidos. Desse modo, os pesquisadores adaptam vários métodos que se adequem ao objeto estudado, assim, o professor Nascimento conta que “a metodologia criada, na verdade, é uma combinação entre ciência social computacional, sociologia digital e antropologia digital”.

São os chamados métodos mistos: “estamos articulando análises computacionais com processos computacionais de coleta e de processamento de dados mais análise sociológica e socioantropológicas a cerca dessas mensagens”, informa.

Descobertas ao longo da investigação  

A pesquisa começou em 2020, logo após o início da pandemia, e, desde então, é realizada a coleta de mensagens. “A rigor, não é uma pesquisa sobre conteúdos neonazistas e antivacinas, mas os pesquisadores começaram a perceber que grupos contrários à vacina ou antivacina e grupos neonazistas estavam propagando desinformação. Então passamos a colocar esses grupos no nosso radar”, lembra o docente, destacando que esses grupos não são o alvo da pesquisa.

A partir de 188.198 mensagens de texto que foram compartilhadas no período de janeiro a dezembro de 2020, foram filtradas e analisadas as comunicações relacionadas com três posicionamentos controversos do governo federal: a oposição às medidas de distanciamento social, a defesa do uso da hidroxicloroquina como tratamento precoce para a Covid-19 e, por fim, a negligência e/ou descrédito em relação à vacinação.

Durante a pandemia, ao longo do ano de 2020, os dados coletados formam um contínuo que o professor explica do seguinte modo: “no primeiro momento, nos grupos de informação estudados, a pandemia, a Covid-19 não existiria para eles. À medida que o tempo foi passando e essa posição se tornou insustentável, eles começaram a perceber que a Covid existia, mas não era algo grave, dizendo que não era preciso usar máscara e nem distanciamento social e que ‘o Brasil não podia parar’”.

Num determinado ponto no meio de 2020, “eles perceberam que não conseguiriam sustentar esse posicionamento, daí, admitiam que existia a doença, era grave, mas tinha cura; foi o momento de destaque para os medicamentos cloroquina e ivermectina”, que tiveram “aumento exponencial das mensagens”, explica o pesquisador.

Nascimento também pontuou a mesma constância para ‘os casos de Manaus’. “Quando chegou no final do ano, em que as primeiras ações começaram a ser ministradas, a história mudou. Os grupos esquecem totalmente a questão da ivermectina e da cloroquina, e o foco passou a ser, realmente, em dizer que as vacinas causariam algum tipo de doença ou outras das mais diversas teorias”.

A pesquisa ainda está em andamento e é uma parceria entre a Universidade Federal da Bahia e a Universidade Federal de Santa Catarina, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira  e apoio de pesquisadores de instituições internacionais como a Universidade Manchester e Universidade Nova de Lisboa. Pela UFBA, os professores do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação – campus de Camaçari, Leonardo Nascimento e Paulo Fonseca; da UFCS, a professora Letícia Cezarino, que é especialista no tema “bolsonarismo”; da Unilab, o professor Eric Brasil; da Universidade Manchester, a professora Bárbara Ribeiro e da Universidade Nova de Lisboa, o professor Daniel Alves.