Jesuíta põe Salvador na rota dos sábios em obra rara lançada pela Editora da UFBA

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O padre Uranófilo fazia o seu retiro espiritual na Quinta do Tanque, atual sede do  Arquivo Público do Estado, mas que, na Salvador seiscentista, era um retiro de religiosos da Companhia de Jesus. Ao personagem principal, Uranófilo, que personifica o autor, o jesuíta morávio e astrônomo Valentin Stansel, se juntam Urânia, a musa dos céus e Geonisbe, a musa da terra, e os três resolvem conversar sobre a fauna e a flora brasileira e refletir, sob o céu da Bahia, sobre os moradores e a cidade do Salvador, também conhecida como “Empório Celebérrimo”. Em um momento de êxtase, Uranófilo se transporta para a Lua em companhia de Urânia que lhe explica tudo sobre o satélite, o conhecimento astronômico mais atualizado para a época da Lua e dos seus efeitos sobre a Terra. Terminada a viagem, o peregrino retorna à Quinta e discute com as musas o que viu e o que se passou durante sua ausência.

Adiante, essa sequência de eventos se repete ao longo dos dez êxtases que compõem a obra, travando-se um diálogo filosófico sobre os céus Em seguida à Lua a peregrinação prossegue na esfera de Mercúrio, depois Vênus e o Sol e ainda Marte, Júpiter e Saturno, antes de Uranófilo adentrar as estrelas do firmamento e o céu empíreo, morada dos deuses. Das discussões entre os três personagens surgem os temas que eram discutidos pelos astrônomos da época como a natureza dos cometas, seu trajeto e localização no céu; as marés, as manchas solares e as crateras lunares. Uranófilo é uma obra de astronomia que usa um modelo literário muito comum na época, o diálogo e o recurso das viagens interplanetárias, também de uso bastante impactante naquele tempo.

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Valentin Stansel – O autor de uma obra rara Fonte: https://ar-ar.facebook.com/322648238638954/posts/686387412265033/

O autor, Valentin Stansel, estudou no colégio da Companhia de Jesus, em sua cidade natal e ensinou matemáticas na Universidade de Praga. Depois que se torna jesuíta pede para ser enviado como missionário na China, onde era reconhecida a importância e qualidade, na época, dos astrônomos e dos matemáticos na Missão. Em 1656, inicia sua viagem passando inicialmente por Roma e depois permanece cinco anos em Portugal, aprendendo o português e ensinando nas escolas da Companhia de Jesus, enquanto aguardava a sua partida para o Oriente. Mas os astros não confabularam a favor de Stansel e, em 1662, por conflitos internos da sua Ordem, ele desembarca, não na China mas sim em Salvador, na Bahia, e  vai morar no Colégio dos Jesuítas, hoje um dos prédios da Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus. Estamos na segunda metade do século XVII, época do padre Antônio Vieira, com quem o jesuíta astrônomo Stansel teve sérios conflitos.

Lançamento

A Biblioteca Nacional (BN) guarda, entre suas obras raras, uma copia do  livro  Uranophilus caelestis peregrinus (Uranófilo, o peregrino celeste), do padre jesuíta Valentin Stansel, que veio a ser recém traduzido do latim pelo professor Carlos Ziller Camenietzki, Doutor em Filosofia pela Université de Paris IV – Sorbonne e professor associado do Instituto de História da UFRJ. Em dezembro do ano passado, (2021) a editora mineira Fino Traço, que ficou à frente da parte editorial da publicação, em parceria com a Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA) lançaram  Uranófilo o peregrino celeste e os êxtases da mente urânica peregrinado sobre o mundo das estrelas, por Valentin Stansel de Castro Júlio, com tradução, introdução e notas por Carlos Ziller Camenietzki.

“A parceria com a Edufba está relacionada também ao papel de liderança que em muitas áreas a UFBA vem se destacando, principalmente nessa área de História da Ciência”, ressalta Ziller, em recente reportagem para o jornal Correio ( 23/04/2022). Para a Diretora da EDUFBA, Flávia Rosa esta “edição marcante para a história da ciência e da cultura, uniu esforços de duas editoras a Fino Traço e a Editora da Universidade Federal da Bahia com o apoio da Biblioteca Nacional, graças ao Programa de Residência em Pesquisa que possibilitou a tradução de Carlos Ziller Camenietzki”. “Podemos dizer, continua Flávia, que essa edição,  pela sua importância e resgate histórico, merece ser celebrada como uma importante obra, lançada em 2021.”

Salvador integrada à rede dos sábios

O diálogo em Uranófilo começa com uma descrição da cidade do Salvador, na época a mais importante do Atlântico Sul: as suas construções, seu porto e diversas referencias sobre a vida do lugar. Stansel descreve também as ilhas do Recôncavo, povoadas de  animais e “monstros” marinhos que aparecem na praia, bem como os naufrágios e combates contra invasores e piradas. Um desses “monstros” descritos pelo jesuíta é o Ypupiara, que é abatido e devorado pelos índios.

“No entanto, expor e debater a matéria astronômica são os objetivos principais dessa obra. Nas discussões entre os personagens emergem os principais temas em debate pelos astrônomos da época. Discute-se a natureza dos cometas, seu trajeto e localização no céu; as marés, as manchas do Sol, as crateras da Lua etc.”, declara  Carlos Ziller, físico, filósofo, estudioso e tradutor  do livro de  Stansel.

Na obra, ainda de acordo com informações de Ziller, o padre Stansel não se furta às discussões mais complexas para um astrônomo religioso da época. Ele defende, por exemplo,  a cosmologia policêntrica de Tycho Brahe, sábio luterano heterodoxo de Copenhagen, contra o helio- centrismo de Copérnico e Galileu, católicos convictos. Além disso, Stansel demonstrava conhecer e apreciar as teses de Descartes e curiosamente, o autor afirma ter recebido a obra fundamental de Descartes (“O Discurso sobre o Método”) pelas mãos de viajantes franceses, de passagem por Salvador, a caminho de Madagascar. A máxima “Penso, logo existo” poderia ter “chegado”, dessa maneira, à Salvador da Bahia..

“Levando-se em conta que a obra mais marcante da ciência moderna, os Princípios matemáticos da filosofia natural, de Isaac Newton, foi publicada apenas dois anos depois da edição desse diálogo, continua o professor Ziller, o livro de Stansel ganha interesse por expor e discutir as teorias mais importantes do século de Galileu e Descartes antes que a grande síntese fosse conhecida”.

E mais adiante: “Assim, ainda que se possa dizer que o livro não foi um grande sucesso literário, será incorreto crer que o diálogo baiano de Stansel tenha morrido precocemente nas estantes das grandes bibliotecas do mundo. A obra também mostra que, embora bastante afastada geograficamente do Velho Mundo, Salvador era cidade relativamente integrada à rede de correspondência entre os sábios, e que de forma alguma se achava isolada dos debates e das preocupações dos homens de ciência”.

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O tradutor professor Carlos Ziller Fonte: https://www.bn.gov.br/es/node/2606

O Tradutor

Essa viagem pelo espaço sideral de carona na imaginação de um missionário jesuíta da época do Brasil colônia foi o tema no qual se debruçou o  professor e pesquisador residente Carlos Ziller Camenietzki, bolsista do Programa de Residência em Pesquisa na Biblioteca Nacional na edição 2016.

O doutor em Filosofia pela Universidade de Paris IV-Sorbonne com uma tese sobre o pensamento de Athanasius Kircher,  jesuíta e importante filósofo natural do século XVII, já tinha participado da criação do Museu de Astronomia e Ciências Afins nos anos oitenta do século passado e, desde então, vem se dedicando aos temas de história da ciência, em especial ao estudo da produção dos cientistas da antiga Companhia de Jesus, e da história política de Portugal. Editou o Tratado da Esfera, de Johannes de Sacrobosco, e traduziu A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei, segundo informações da BN.

A tradução

É o próprio tradutor quem nos indica o seu artigo “Dar vida aos mortos? As questões de uma tradução de obra antiga escrita em língua extinta”, publicado pela Tradução em Revista da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ, 2019.) como melhor guia para entender o processo de tradução de Uranófilo, vertido diretamente do latim.

Logo na primeira parte do artigo o professor Carlos Ziller confessa “ uma  das grandes questões que se colocam, relativas às traduções de obras escritas há cerca de trezentos anos em língua morta, é o sentido de trazê-las ao público do inquieto século XXI. Não fora apenas o enorme fluxo e refluxo de valorização do pensamento e da literatura pregressa, mas também a gigantesca percepção celebrativa, ou depreciativa, do que foi a vida de nossos antepassados, é iniciativa temerária colocar-se a proposição de trazer ao tempo de agora um livro escrito em latim (numa época em que essa língua manifestava seus últimos estertores) tratando de uma Astronomia que se encontrava às vésperas de enormes transformações”, declara.

Para ele, reviver uma obra esquecida na estante de uma biblioteca implica sempre o “risco de produzir um zumbi literário”. “Afinal, continua Ziller, salvo para alguns professores universitários, uns poucos religiosos antiquados, essa língua é ilustre desconhecida. O enorme valor atribuído tradicionalmente ao latim na Filosofia e na moral pública parece ter sido deslocado há muitas décadas, levando consigo todo o patrimônio intelectual escrito nessa língua. E ainda mais, quanto ao conteúdo, o enorme esforço de conhecimento dos céus, perpetrado por gerações e gerações de estudiosos ao longo de séculos, se desvaneceu quase que completamente quando a Astronomia encontrou uma nova síntese aceita universalmente entre os praticantes”, acrescenta.

Assim, traduzir o diálogo Uranophilus Caelestis Peregrinus de Valentin Stansel para o seu tradutor,, “não é algo que apresente um sentido imediato; algo que faça seus potenciais leitores se acotovelarem nas filas de livrarias, ademais também em fase inicial de extinção”, ironiza.

Os exemplares usados na tradução foram os da Biblioteca Nazionale Vittorio Emmanuele de Roma, microfilmado há mais de vinte anos, e que pertencera ao Colégio Romano da Companhia de Jesus; o da Biblioteca Nacional de Portugal, digitalizado e disponível na internet, e aquele sob a guarda da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que contém poucas anotações manuscritas. Veja aqui, na integra, o artigo de professor Ziller sobre a tradução de Uranófilo. https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/40449/40449.PDF