
Capa da tese de Mayana Rocha Soares
Um olhar afetivo para a literatura brasileira produzida por autoras lésbicas rendeu à professora Mayana Rocha Soares menção honrosa no 17º Prêmio Capes de Teses 2022. Ela defendeu a tese “Nós: afetos e literatura” depois de percorrer o longo território que separa uma estudante negra moradora de um bairro periférico de Salvador – no caso, o bairro de Cajazeiras, que ela define como “minha quebrada” – do título de doutora no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras, sob orientação da professora Denise Carrascosa. Mayana é atualmente professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob). A tese é uma das quatro agraciadas neste ano pelo Prêmio Capes, sendo duas vencedoras do prêmio principal e duas menções honrosas.
Mayana explica que sua tese consiste numa pesquisa de crítica literária inscrita num rol de “fundamental importância” (as aspas reforçam a opinião da autora) para o campo da crítica literária negra e das dissidências sexuais e de gênero no Brasil. Dialogando com diferentes perspectivas teóricas afrodiaspóricas nacionais e internacionais, a tese apresenta uma discussão que aproxima a crítica literária brasileira “das questões que envolvem os marcadores de gênero, raça, classe e sexualidade, a partir de um caminho teórico-metodológica interseccional”, ela defende.
“A proposição geral – detalha – consistiu em realizar uma crítica literária negra sapatão, buscando compreender como os afetos atravessam os textos literários escolhidos e quais os usos que fazemos desses afetos para continuarmos vivendo num mundo da colonialidade antinegro, que odeia as periferias e as sapatonas. Através de narrações e poéticas inscritas nos textos literários, atravessadas pelas minhas próprias experiências, a tese é um convite para experimentações afetivas diversas”, diz Mayana.
E adiante: “Com o foco nas produções literárias negras e sapatonas brasileiras, a tese produziu reflexões sobre trabalhos literários de intelectuais e escritoras negras sapatonas tais como Louise Queiroz, Cidinha da Silva, Miriam Alves, Conceição Evaristo, Kika Sena, Adriele do Carmo, Ana Luisa Santos, Ani Ganzala, Kati Souto, Drikka Silva e Ryane Leão, com o foco no uso dos afetos como uma ferramenta de revide, transformação e cura das nossas corpas”.
Através dos contos, romances, crônicas e poemas dessas autoras, são percorridas suas narrativas e poéticas, buscando flagrar nelas amor, raiva, medo, dengo e erotismo, tendo por base teórica fundamental o pensamento de Audre Lorde – escritora feminista americana ativista dos direitos civis e homossexuais – sobre os usos dos afetos. “Como reconhecer os usos dos afetos coloniais? Como revidá-los? Como construímos afetos outros para viver com alguma plenitude na colonialidade? Como usar os afetos coloniais para (sobre)viver e produzir cura?”, pergunta a pesquisadora. Essas são algumas questões elaboradas e discutidas ao longo do trabalho.
Segundo Mayana, a originalidade do trabalho concentra-se também na combinação entre conteúdo e forma, ou seja, no modo como a autora grafou a pesquisa realizada, “em formato ensaístico, com momentos de interação através de uso de QR Code, diagramação diferenciada, ilustrações com aquarelas, epígrafes com letras de músicas nacionais e cenas de acontecimentos, momentos de vazão do pensamento, através da presença de alguns manuscritos, exercícios de Bem Viver, detalha a forma em “Nós: afetos e literatura”. A tese completa pode ser encontrada no repositório de Teses e Dissertações da UFBA.
De enorme valia
“Num tempo político de grande desmobilização e descrédito à produção científica, com cortes de verbas e perseguição racista LGBTQUIAP+fóbicas às populações negras e das dissidências sexuais e de gênero, acredito que uma tese como essa, receber uma menção honrosa da instituição máxima de avaliação de produção de saber científico no país, que é o Prêmio Capes, é de enorme valia. Sobretudo, quando pensamos que, geopoliticamente, as premiações e o valor simbólico acabam sendo direcionado para as universidades do Sul/Sudeste do país”, avalia Mayana.
Sobre a premiação, a professora orientadora Denise Carrascosa compartilha do mesmo sentimento de Mayana ao declarar que “o reconhecimento da Capes a essa pesquisa demonstra e ratifica o que diversos estudos vêm mostrando: que a inclusão das comunidades negras, LGBTQIA+, das comunidades periféricas, indígenas, com deficiência, nas universidades publicas e em especial nas ações afirmativas relativas às cotas raciais estão trazendo para universidade pesquisadores e pesquisadoras de excelência, e em especial na região nordeste”.
Três dimensões
Analisando o trabalho, Denise Carrascosa destaca que importância da escrita dessa tese se delineia em pelo menos três dimensões. “A primeira delas é de que há um avanço teórico critico, na medida em que Mayana desenvolve os estudos da teoria dos afetos no Brasil, aplicada ao campo da critica literária”.
“Uma segunda dimensão de importância tem haver com o fato de que esta tese realiza uma cartografia da literatura brasileira contemporânea, visibilizando autoras, escritoras que normalmente estão excluídas do cânone nacional literário, então, produzindo uma possibilidade de impacto sobre modificação de currículos na formação literária, seja nas escolas no ensino fundamental, seja no ensino universitário nos cursos de letras”, acrescenta a orientadora.
E por fim, conclui Carrascosa, “uma terceira dimensão de importância da tese tem haver com o fato de que ela conecta a critica literária ao campo da identidade, que é um conceito político, fundamental pra promoção da democracia no Brasil, e ainda necessário para o pensamento interseccionado entre raça, gênero e classe social, no campo da literatura conectado às demandas de sensibilidades críticas de leitura desse Brasil ainda excluído, ainda vulnerabilizado, ainda sujeito ao genocídio, ao feminicídio, que é esse Brasil negro, periférico, LGBTQIA+.
Denise Carrascosa é professora associada de literatura de língua inglesa da Universidade Federal da Bahia e no Instituto de Letras e professora do PPG LITICULT, programa de pós-graduação em literatura e cultura da UFBA vinculada a linha de pesquisa de estudo de representações e teorias literárias. Desenvolve um projeto de pesquisa no campo da critica literária e da tradução literárias e um projeto de extensão que trabalha com remissão de pena pelo estudo da literatura, pela escrita literária, no presídio feminino de Salvador no complexo penal da Mata Escura. É doutora em Teoria e Critica Literárias (UFBA) e Pós-doutorado em Historia da África, da Diáspora e dos povos indígenas (UFRB).
Caminhada
Mayana começou sua trajetória acadêmica na UFBA em 2006, no curso de graduação em ciências sociais, graças à implementação das Políticas de Ações Afirmativas. Fez também, através de bolsa Prouni, o curso noturno de letras, na Unijorge, tendo participado de grupos de pesquisa e programas de iniciação científica nas duas instituições. Após finalizar o curso de letras, especializou-se em estudos culturais, história e linguagens, o que a aproximou ainda mais do campo das humanidades. Após finalizar a licenciatura em ciências sociais, em 2012, começa a trabalhar como professora de língua portuguesa e literatura. Simultaneamente, participa do grupo de pesquisa Processos de Hegemonia e Contra-Hegemonia, sob a orientação do professor Jorge Almeida, que considera fundamental na sua formação intelectual, profissional e pessoal.
No mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) na Uneb, trabalhou com a literatura de João Gilberto Noll e dissidências sexuais e de gênero. Naquele momento, já frequentava o antigo CUS, grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (IHAC/UFBA), coordenado pelo prof. Dr. Leandro Colling. Entra no doutorado em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (UFBA), em 05 de novembro de 2021, defende a tese hoje premiada. Atualmente, Mayana Rocha Soares é professora adjunta da Universidade do Oeste da Bahia (Ufob), onde coordena o grupo de pesquisa Reexistências, juntamente com a professora Luziane Amaral.