A professora, dramaturga e atriz Cleise Furtado Mendes foi outorgada Professora Emérita da Universidade Federal da Bahia, em sessão solene realizada no dia 24 de outubro de 2022, no Salão Nobre da Reitoria da UFBA. Na tribuna, presidida pelo reitor Paulo Miguez estavam também, além do vice-reitor Penildon Silva Filho e da homenageada, o diretor da Escola de Teatro, a unidade propositora do título, professor José Cajaíba e as oradoras oficiais da solenidade, professoras Evelina Hoisel e Edleise Mendes, as duas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (ILUFBA).
Cleise Mendes foi conduzida até o doutoral pelo ator e professor decano da Escola de Teatro Harildo Déda, pelo diretor teatral Deolindo Checcuci e pelo professor Paulo Dourado, proponente do título à Cleise. A sessão foi aberta por atores e atrizes que apresentaram trechos da produção poética de Cleise e por músicos da Universidade Federal da Bahia. O professor Cajaíba foi o primeiro a saudar Cleise Mendes, também sua professora, considerando-se uma pessoa de sorte pelo o fato de poder representar naquele ato, a comunidade da Escola de Teatro.
Primeiro circulo
Cleise Mendes nasceu no Rio de Janeiro e reside em Salvador desde 1966. É professora titular aposentada da Escola de Teatro/UFBA e cursou licenciatura e bacharelado em Estudos Literários no Instituto de Letras/UFBA, na qual ingressou como aluna, em 1969. No seu discurso de posse constrói a sua trajetória em círculos, “nem sempre concêntricos” e declara que, como aluna da UFBA ”para minha sorte, vivia uma autêntica primavera, sob a liderança de grandes mestres que abriam diante de nós, aprendizes, novas e ousadas perspectivas em nosso campo de estudos. Para ser breve, uso aqui uma paráfrase de versos de Jorge Luís Borges: “Que outros se orgulhem das aulas que ministraram; a mim me orgulham as que recebi”, cita Cleise Mendes em reconhecido agradecimento aos mestres do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.
Entre esses mestres estavam Nelson Rossi, Rosa Virgínia de Matos e Silva, Suzana Alice Cardoso, Nilton Vasco da Gama, Célia Teles, Gina Magnavita, Lígia Teles, Antônia Herrera, Judith Grossmann e Evelina Hoisel. Hoisel, em saudação à colega emérita se dedicou a mostrar “os laços de convivência entre as letras e a literatura dramática, estreitados desde a década de 70 pela “incomum” Judith Grossmann, responsável pela formação de várias gerações de estudantes de letras e teatro”. A disciplina de literatura dramática e dramaturgia foram criadas, introduzidas no currículo de letras e de teatro pela professora Judith Grossmann. Cleise frequentou também as oficinas de teatro literário criadas por Judith e desde o seu ingresso na UFBA, foi professora de dramaturgia da Escola de Teatro, lembra a professora Evelina no seu discurso de saudação.
Um outro círculo
Em 1973, como aluna-atriz, chega à Escola de Teatro e em 1977 ingressa como professora do quadro permanente daquela unidade da UFBA como Professora Auxiliar I.
“Por isso, um segundo círculo se apresenta como alvo do meu agradecimento, e é um círculo bem amplo, difícil de mensurar, cultivado em 44 anos de atuação em sala de aula”. […]
“Conservo um certo número de pequenos cadernos, cujas anotações preservam alguns traços desse longo convívio; guardo-os com um apego de memorialista, e eles sempre escapam ao descarte, mesmo naquelas faxinas de fim de ano, que costumam ser as mais impiedosas”. […]
“Nesses caderninhos não se registram apenas os textos a discutir, os tópicos a debater. Aqui e ali encontro, como pedras que brilham nesse garimpo, como faíscas preciosas, as dúvidas. As minhas, e as dos alunos”.
Em 1985, Cleise conclui seu Mestrado em Letras (UFBA) e, em 2001, defende sua tese de doutorado no mesmo Instituto de Letras, gerando uma série de artigos publicados dentro e fora da UFBA. Até o momento, já escreveu 48 peças encenadas; tem 11 livros publicados, entre contos, poesia, dramaturgia, ensaios críticos-teóricos e literatura infantil; e mais de uma centena de textos, entre artigos em periódicos, capítulos de livros, prefácios e trabalhos em anais de eventos.
Outros círculos
Em paralelo com o estímulo vindo da sala de aula havia também o espaço da criação teatral, compartilhado com colegas artistas, atores e diretores, relembra Cleise.
“Essa parceria criativa foi determinante em meu trabalho, primeiro como atriz, e logo como dramaturga. Depois da experiência de estar em cena, ainda estudante do curso de Formação do Ator, eu segui atuando, já como professora da Escola, em várias montagens da Companhia de Teatro da UFBA, graças à orientação imprescindível de colegas diretores como Ewald Hackler, Harildo Deda, Paulo Cunha”.
Mas Cleise Mendes reconhece que também recebeu lições diárias dos atores e atrizes com os quais contracenou “e isso inclui até mesmo meus filhos Elisa Mendes e Edlo Mendes, que então com 10 e 12 anos dividiram o palco comigo, na peça Seis Personagens a Procura de Um Autor, espetáculo fundador da Companhia de Teatro da UFBA, dirigido por Harildo Deda”. A professora de Letras Edleise Mendes, a irmã mais velha de Elisa e Edlo, lembra como era essa “convivência familiar” durante o discurso com o qual saudou à mãe homenageada.
“Era uma casa de artistas, onde vivíamos as palavras “O feijão e o sonho” e Cleise Mendes conseguia ser os dois” E acrescenta que se consolidar como professora na Escola de Teatro, em 1975, “deu-lhe (à Cleise) certo conforto a tranquilidade de respirar e trabalhar, sabendo que teria um salário no final do mês e, mais que isso, a Escola de Teatro foi o cenário da moça do subúrbio carioca, magicamente seduzida pela a Bahia”, rememora Edleise.
E mais outros
Por mais de uma década, os trabalhos como atriz e dramaturga correram em paralelo na vida da professora Cleise Mendes. Houve um momento, porém, em que a dramaturga tomou o lugar da atriz. Segundo ela, essa “virada dramatúrgica” ocorreu “por obra desses tão queridos diretores – que me deram tanto trabalho! – que me incitaram a produzir textos para cena, em desafiadora cumplicidade com seus sonhos e concepções. Neste círculo está José Possi Neto, responsável direto por minha estreia como dramaturga, com o musical Marylin Miranda, em 1975; neste círculo estão Paulo Dourado, Deolindo Checcucci, Harildo Déda, Luiz Marfuz, Paulo Cunha, Sérgio Farias, Hebe Alves, Carmem Paternostro, Márcio Meirelles, Elisa Mendes”.
A relevância acadêmica, artística e de pesquisadora no campo da dramaturgia, colaborando para a excelência do programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, na formação de jovens atores e atrizes, de graduação e cursos livres de teatro, e de novos/as dramaturgos/as fez de Cleise uma autora-pesquisadora-professora relevante para a fluidez e renovação da cena artística baiana e nacional.
“Anos depois, tive a alegria de constatar quantos novos autores teatrais, com peças premiadas e encenações bem-sucedidas, tinham iniciado sua escrita naquelas aulas de dramaturgia”, reconhece a atriz-dramaturga.
Eleita para a Academia de Letras da Bahia, em 2004, Cleise disse, em seu discurso de posse, que “o afeto que nos movia não era o desejo de imortalidade literária, algo que não podemos nem planejar, nem atribuir. Acreditava, então, e acredito ainda, que o desejo que nos move é o de perdurar na lembrança daqueles que amamos; é o de nos tornarmos, não imortais, mas inesquecíveis”.
Círculos finais
“E nem sei como sintetizar meu agradecimento a essa outra casa, a nossa Casa de Eros, a Escola de Teatro da UFBA, círculo pleno de acontecimentos e transformações, no qual tive a felicidade de, durante décadas, poder aliar o trabalho docente e a criação artística. O diretor teatral Eugênio Barba escreveu, ao final de um relato autobiográfico, essa frase que iguala sabedoria e humildade: “Somos todos filhos do trabalho de alguém.” É justo afirmar que o trabalho coletivo que produziu, ao longo de 66 anos, o significado social e artístico desse centro de ensino e de produção teatral é filho direto da visão de seus lúcidos fundadores, em especial o primeiro diretor da Escola de Teatro, Martim Gonçalves, de quem herdamos a confiança no sentido transformador da arte e a fé nos poderes do teatro”.
Para ela essas experiências só foram possíveis pela existência da Universidade Federal da Bahia. “Devo tudo à existência de uma universidade pública e gratuita, e de uma universidade que cuidou, desde os primeiros anos de sua formação, de investir na criação e manutenção de uma área de Artes, segundo o plano arrojado do Reitor Edgard Santos, e graças à bendita perseverança de muitos de seus sucessores, que defenderam esse patrimônio cultural contra inúmeras tentativas de dilapidá-lo”.
“Isso é resultado, claro, sempre do trabalho de muitos, mas há que destacar a liderança exercida pelo ex-reitor João Carlos Salles, em consonância com sua equipe, e, sobretudo, em cumplicidade produtiva com seu então vice-reitor, professor Paulo César Miguez, hoje por sua vez dirigente máximo desta instituição, para nossa alegria e segundo a vontade expressa da comunidade universitária. A UFBA respondeu a essas ameaças com altivez e trabalho, e enfrentou os ataques do obscurantismo reinante, provisoriamente reinante, como sabemos já, e em breve celebraremos”, finalizou Cleise.
Encerrando a cerimônia, o reitor Paulo Miguez declarou que “uma cerimônia especial certamente nos obriga a um olhar ainda mais cuidadoso, carinhoso, junto com nossa casa e essa cerimônia certamente, é uma cerimônia em que nós homenageamos aqueles que fizeram a nossa história. Esta é uma cerimônia desse tipo, em que celebramos a historia de Cleise e, ao fazer, saberão a nossa historia. A história da Universidade é contada exatamente por cada um de nós, especialmente aqueles, que ao longo de tanto tempo, dedicaram o melhor de si”.
“Estamos à beira de um tempo novo, tenho a certeza de que ao menos aqui nessa Casa não vamos vacilar, porque sabemos exatamente o que está em jogo: está em jogo é a vida, é a democracia, é esta Casa que você honrou e honra com sua história e com a sua produção. Obrigado, Cleise” finalizou Paulo Miguez.