O crescimento do teletrabalho em escala global foi um movimento acentuado pela pandemia. No entanto, a mediação do trabalho pelo aparato tecnológico não é capaz de excluir a necessidade do trabalho humano. A constatação é do sociólogo Ricardo Antunes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, que esteve na UFBA abrindo a programação da Semana do Servidor 2022 – evento realizado pela Pró-reitoria de Desenvolvimento de Pessoas, com apoio da Apub e da Assufba.
Antunes participou, no dia 25 de outubro, no Salão Nobre da Reitoria, de um debate que contou também com a participação da professora Graça Druck, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA. No encontro, Antunes e Druck compartilharam reflexões sobre o trabalho digital – ou teletrabalho – , os impactos da crise sanitária e as perspectivas futuras em um cenário de aprofundamento da precarização das relações trabalhistas.
Druck demonstrou preocupação de se trazer para o serviço público a lógica da iniciativa privada – com adoção do trabalho digital para redução de custos, aumento de produtividade, controle sobre o trabalho, definição e rigor de metas. E apontou o equívoco de se pensar “vantagens e desvantagens” do teletrabalho no setor público a partir de interesses pessoais, em detrimento dos interesses das instituições. (Leia mais abaixo)
“A pandemia nos mostrou que, embora o capital possa reduzir ao máximo o trabalho humano, ele não pode eliminá-lo”, disse Antunes. “Nenhum smartphone, tablet ou assemelhado pode sequer existir sem a interação com a atividade humana. (…) Não há nada do chamado mundo virtual e digital que não dependa, em alguma instância, do labor do trabalho”, acrescentou.
Antunes lamentou o fato de que tecnologias, que são inventos da humanidade, estejam frequentemente dominadas por corporações destrutivas que têm o imperativo da acumulação. Todo aparato tecnológico, inclusive, é também muito lucrativo para essas grandes corporações, ressaltou, comentando a atuação de plataformas internacionais que se proliferam fazendo a intermediação na prestação dos mais diversos serviços e contribuem para desmontar as relações de trabalho. Segundo o seu entendimento, a tecnologia tem sido utilizada para a precarização do trabalho diante da força de trabalho “sobrante”, composta por um exército de desempregados e desempregadas produzido pelo capitalismo.
Em sua avaliação, vende-se a ideia do “empreendedorismo” e da “autonomia” para um trabalhador que passa a ser tratado como “colaborador”, tendo os seus direitos suprimidos. O professor deu como exemplo disso os motoristas de veículos cadastrados em aplicativos, que muitas vezes precisam trabalhar até 20 horas por dia para conseguir seu sustento, e ainda precisam bancar os custos envolvidos para a prestação dos serviços e dividir os valores arrecadados com as empresas.
O modelo neoliberal também avança no setor público e promove ataques aos direitos do funcionalismo, segundo alerta o professor, que considera que modalidades como o teletrabalho, trabalho remoto ou “home office” geram, em muitos casos, a individualização e a invisibilização dos trabalhadores, eliminando os espaços de sociabilidade e comprometendo a sua capacidade de organização.
Antunes também questionou os benefícios da educação online, criticando a mediação do ato pedagógico por máquinas que eliminam o processo interativo presencial tão significativo na relação entre estudantes e professores.
Papel do Estado e políticas públicas
De acordo com a professora Graça Druck, a pandemia evidenciou a centralidade do trabalho na sociedade e do papel do Estado e das políticas públicas – que foram necessárias para fazer frente à crise sanitária. Além disso, também demonstrou a tragédia e falência das políticas neoliberais e as extremas desigualdades econômicas, sociais, raciais e de gênero.
Na sua observação, há uma nova ofensiva do capitalismo neoliberal no campo da regulação do trabalho, com a violenta retirada de direitos dos trabalhadores. “Há um conjunto de contrarreformas no Brasil e no mundo que têm como elemento central a legalização da precarização do trabalho,” afirmou.
Também no setor público, reformas no aparato do Estado buscam substituir gradativamente o servidor público estatutário, com a sua estabilidade, por trabalhadores com vínculos precários, que são terceirizados em uma forma de privatização dos serviços públicos, apontou a professora. Ela criticou a proposta de reforma administrativa, “que visa, em última instância, extinguir a categoria do servidor público”.
Sobre os vínculos dos trabalhadores com aplicativos e plataformas, Druck acredita que essa é uma estratégia do capital para negar a existência do trabalhador, um ser coletivo, uma classe social. “É isso o que o capital não quer: reconhecer o trabalhador como classe social”.
Druck lembra que, durante a pandemia, foram exatamente os trabalhadores da área de serviços, como os entregadores, terceirizados de todos os tipos – exatamente os mais precarizados – aqueles considerados como essenciais e que precisaram continuar trabalhando.
A pesquisadora demonstrou preocupação de se trazer para o serviço público a lógica da iniciativa privada – com adoção do trabalho digital para redução de custos, aumento de produtividade, controle sobre o trabalho, definição e rigor de metas estabelecidas. E apontou o equívoco de se pensar “vantagens e desvantagens” do teletrabalho no setor público a partir dos interesses pessoais de cada um.
“As saídas possíveis para esse quadro e para a construção de uma nova agenda estão dadas no campo da política”, disse, ressaltando a importância da organização dos trabalhadores e das mobilizações populares. Citou a campanha como Revoga Já, que propõe a revogação da reforma trabalhista, e defendeu também a necessidade de revogação da reforma da previdência e do teto de gastos.