Grupo Odundê: um ciclo que abriu espaço na Universidade aos corpos negros que dançam na Bahia

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Cópia de Cópia de LRM_20220908_160534Foto: Aristides Alves

Muito embora os corpos de mulheres negras já dançassem na Bahia desde tempos imemoriais, somente na década de 80 do século passado os estudos acadêmicos, pelo menos entre nós, abriram os olhos e notaram salas vazias desses corpos, por puro preconceito de raça e cor. Foi então que, em 1981, foi criado em Salvador, na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, o Grupo Odundê, com a proposta pioneira de articular aspectos da cultura negra na Bahia com a dança e com o ambiente da academia. A UFBA, mais uma vez, saía na frente.

Tendo produzido trabalhos até os anos 2000, sempre buscando uma dança contemporânea a partir de referenciais afro baianas, o Odundê nasceu de uma visão crítica sobre o currículo da Escola de Dança da UFBA. Em um movimento de trocas entre estudantes e a professora e pesquisadora Conceição Castro, foi desenvolvida a pesquisa Estudos do Movimento da Dança Afro-Brasileira.

Professora Conceição CastroFoto: Marcos de Sá

Professora Conceição Castro

“O projeto foi criado por mim na década de 80, iniciozinho de 81. Acompanhávamos, vindos do Serviço Social do Comercio (Sesc), muitos alunos negros que  ingressaram na Escola de Dança em busca de uma formação superior. As alunas, eram muito criticadas, [dizia-se:] ‘tem o quadril enorme, tem os pés chatos e não puxa ponta”, por puro preconceito, por termos sido uma escola fundada por poloneses (Yanka Rudzka, entre 1956 e1959), e por alemães (Rolf Gelewsky, de 1960 a 1965), com formação europeia muito forte e sem olhar para cultura local e para esses alunos que poderiam aqui chegar”, lembra a coreógrafa e diretora do grupo, Conceição Castro.

Castro continua: “Precisava ser feito alguma coisa, aí eu fiz o projeto Estudos do Movimento da Dança Afro-Brasileira, onde cada etapa de pesquisa, enquanto eu observava essas danças religiosas e sociais, era finalizada com um espetáculo que apresentava o resultado daquele ciclo. O primeiro foi o Odundê. Nossa Senhora foi um sucesso total, viajamos até pra França (onde participaram, como convidados, do Festival de Folclore do Sul da França).  Me lembro que no dia da estreia duas professoras que eram as mais criticas das (alunas) que tinham “quadril grande e pés chatos” virou-se pra mim e disse: “Como você conseguiu que elas dançassem assim?” Eu respondi: “Não fui eu quem consegui, eu abri um espaço, orientei e elas conseguiram dançar do jeito que elas sabem dançar””, lembra uma emocionada Conceição.

O destino de cada um

O Odundê (1981-82), palavra iorubá que segundo documentos do grupo significa “Ano Novo”, “Nova Era”, ou ainda “O Destino de Cada Um”, foi criado a partir do ritmo e da energia dos corpos negros, e terminou nomeando o grupo e reverberando em outras criações, produzindo até 1986, com essa linha de pesquisa, mais três trabalhos: “Didewá (1982), “Morongê” (1984); “Caindo no Popular” (1986). O Grupo seguiu ainda com as obras Obinrin Marun-dé e a Retrospectiva dos 10 anos do Odundê que reuniu fragmentos da trajetória do grupo.

Quatro décadas depois de iniciada essa história, o Memorial de Dança da UFBA se dedicou a levantar, organizar e divulgar vestígios dos dez primeiros anos dessa dança. O compartilhamento com o público foi realizado pelo projeto “Memórias Coreográficas: Ciclo Odundê 10 Anos”, de 16 a 18 de novembro de 2022, no Hall de entrada e no Teatro Experimental da Escola de Dança, no campus da UFBA, em Ondina. O evento foi gratuito, aberto ao público da instituição e aos interessados.

Exposição Ciclo Odundê - 10 anos.Foto: Arquivo Memórias Coreográficas

Exposição Ciclo Odundê – 10 anos.

Memórias Coreográficas

O projeto Memórias Coreográficas busca consolidar um espaço de diálogo no qual artistas, suas memórias, tempo, movimento e criação dialoguem com a contemporaneidade. É um encontro entre os que viveram experiências comuns e aqueles que desejam conhecê-las. É um modo de compartilhá-las e de pensar dança(s) e sua permanência.

“Esse projeto do Memorial de Dança da UFBA tem alguns braços, um braço é a organização do acervo que encontramos aqui, guardado pela Escola, relativo a produção dos grupos, alguma coisa de currículo, da Oficina Nacional de Dança, e tem um (outro) braço que é extensionista, que são justamente as memórias coreográficas […] É um projeto também vinculado a uma pesquisa que faço sobre os processos artísticos nos grupos da escola de dança, que vai justamente ao encontro dessas memórias. […]  Esse nome “Ciclo”  é bem especifico do grupo Odundê porque o grupo Odundê foi um grupo que existiu por muitos anos e se transformou. Ele  nasce com uma pesquisa da professora Conceição Castro, depois a professora Conceição Castro sai do grupo que segue o seu caminho também com outras coreógrafas e com outras perspectivas também de pesquisas artísticas”, informa a dançarina Suki Vilas Boas , diretora do evento e curadora do Memorial.

 

Tânia BispoFoto: Izadora Rocha

Tânia Bispo

O Ciclo Odundê-10 anos

Com uma programação diversificada que envolveu dança, uma exposição de fotos de Aristides Alves, que fotografou vários momentos do Odundê, além de “rodas de conversa”, o evento contou com a participação de integrantes do Odundê, como a pesquisadora artística Conceição Castro, as intérpretes criadoras Tânia Bispo e Suely Ramos e os músicos Gil Santiago, Lucas de Gal, Tião Oliveira, além da percussionista Monica Millet.  Esses também participaram das Rodas de Conversa juntamente com as dançarinas e coreógrafas Edileusa Santos e Neuza Saad e com a  artista plástica Edsoleda  Santos, criadora dos figurinos do grupo e integrante do Olodum desde a sua primeira formação, como também o foram as dançarinas Suely  e Tânia e os músicos Tião Bispo e Mônica Millet,   no grupo desde 1981.

Sueli RamosFoto: Izadora Rocha

Sueli Ramos

Lembranças

Monica tinha a prática de tocar para o corpo que se movimenta porque já fazia isto “desde o tempo em que a Escola de Dança funcionava no Terreiro de Jesus”, portanto antes da professora Conceição Castro convidá-la para integrar o Odundê. “Nesse envolvimento, recorda, acabei criando uma trilha para cada coreografia e para mim, que sou de candomblé (Monica é neta de Mãe Menininha do Gantois) e sou percussionista, ficou um desafio muito bacana de criar essa trilha em cima da marcação das acentuações de ombros, de mãos, de pés, pernas, pés, dentro das coreografias [. …] nós temos oito temas de percussão além dos temas de domínio publico como samba de roda, lundu e isso foi uma experiência maravilhosa quando eu tive oportunidade de mesclar a musica instrumental com a acentuação da Onomatopeia dos ritmos que agente faz [ …] com  meu parceiro Tião que até hoje agente toca juntos, trinta anos nessa estrada e agente continua juntos […] É isso ai: Odundê na cabeça”.

A dançarina Tânia Bispo relembra que “tudo começa quando eu entrei na Escola de Dança da UFBA, vindo de grupo folclórico, candomblecista com memórias bem atuantes da ancestralidade e chego nessa escola onde toda técnica oferecida era uma técnica importada, e  (onde) me diziam “você não vai dançar”. Eu gravei isso só que essa gravação ficou superficial mas atingiu meu corpo […] Eu tive um processo de bloqueio e não conseguia improvisar, por que? Estava existindo em meu corpo uma mistura, um misto de memórias, que respondiam à minha identidade e outra, uma leitura que já tinha iniciado aqui na Escola de Dança […] Então isso provocou uma sensação de paralisação, eu paralisei e ai Conceição me diz, “dance o que seu corpo tem de memória, vá, siga, aproveite toda as suas experiências, misture, realize, faça acontecer”.

O Odundê foi o divisor de águas na vida de Suely Ramos, também oriunda de grupo folclórico, como ela nos recorda: “Eu fui do grupo folclórico “Exaltação à Bahia”, do Colégio Estadual Duque de Caxias, na Liberdade. Quando nós entramos nessa escola (Escola de Dança), nós não entramos em um copo vazio, entramos em um copo cheio e a Escola nos ajudou a colocar mais ingredientes, mais líquidos e mais coisas dentro deste copo. Foi isso que o Odundê fez. […] O Odundê a principio, no primeiro ano, era formado por alunos da escola e o único representante homem negro era Reginaldo Flores (o conhecido Conga), que não mora mais na Bahia, mas a segunda formação do Odundê, que foi a partir de 1982, nós mantivemos esse grupo com cinco mulheres pretas […] O Odundê permaneceu durante esses dez anos aqui na escola, teve uma época que não era mais possível manter o grupo […]  Os entraves eram muito grandes, nós não tínhamos como mantê-lo,  como produzi-lo e isso fez com que o grupo acabasse.

A diretora da Escola de Dança, Carmen Paternostro confessa que anda refletindo sobre esse momento “e vejo que esse reiniciar do Odundê é uma coisa que não só obedece a um ciclo de reinicio, mas traz para a Escola de Dança todo um lugar que a gente queria […] existem cobranças, se a gente teve ou não teve, fez ou não fez jus a todo um desejo de recuperação dos estudos afrodiaspóricos e eu acho que isso já foi feito na Escola a quarenta anos atrás e que agora retoma com muito vigor, demonstrando que é uma escola pioneira em tudo e,  principalmente, também nos estudos afrodiaspóricos […] Eu acho que a memória coreográfica, quando ela vem através de uma renovação cíclica, ela traz uma beleza diferente”, declara Paternostro.

20220908_151807Foto: Aristides Alves

Momentos Odundê

Em um primeiro momento, observando o comportamento dramático corporal da dança negra em Salvador, a pesquisa do Odundê levantou características contrastantes do modelo adotado nos cursos de dança da UFBA.

Num segundo momento, o olhar se voltou para outras cidades do Recôncavo Baiano, mais destacadamente sua zona rural e as cidades de Cachoeira, Santo Amaro e São Felix, locais onde havia maior incidência de pessoas e culturas afrodiaspóricas e que se distinguiam na época de Salvador, no ano de 1981.

Em um terceiro momento, numa perspectiva teórico-prática, os procedimentos corporais levantados foram analisados, comparando-os com procedimentos adotados na Escola. E, numa quarta etapa, foram verificadas possibilidades para inclusão dos dados analisados no currículo de dança em vigência.

Um experimento artístico acompanhava cada etapa da pesquisa. Assim o espetáculo “Odundê” emergiu da observação e da experimentação no corpo de características físicas, das posturas e dos movimentos corporais, dos costumes, dos trabalhos e das religiosidades, levantados e analisados, nos laboratórios, através da improvisação e da criação em Dança, na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia.