Situação de refugiados e migrantes africanos na Europa em debate no Congresso UFBA 2023

Download PDF
Michel Agier. Fonte Barcelone, Institut de Humanitas, juin 2022 (Laia SerchNuvol)

O antropólogo Michel Agier, professor da Escola de Altos estudos em Ciências Sociais (EHESS, Paris), atualmente profesor visitante no Programa de Pós-graduação em Antropologia da FFCH/UFBA, falou sobre a situação de refugiados e migrantes, sobretudo africanos, na Europa, em uma mesa do Congresso UFBA 2023, realizada no Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO/UFBA), no dia 17 de março.

O palestrante da mesa “As duas mortes e a vida d@s indesejáveis” foi apresentado pela antropóloga Maria Rosário, professora emérita da UFBA, como um pesquisador que interagiu diretamente com os refugiados e imigrantes em seus “lugares de exílio” e testemunhou a sua marginalização como indesejáveis, sob a indiferença dos mandatários da ordem mundial contemporânea, que decretam a sua morte social antes, e depois a sua morte física. A mesa foi composta também pelo antropólogo da UFBA Livio Sansone.

Agier iniciou afirmando que no século XXI e, principalmente, desde o 11 de setembro de 2001, há uma vontade de pôr em dúvida a liberdade em nome da segurança. “Não se trata apenas de sociedades de estados autoritários, mas também de democracias liberais que, como tais, pretendem ter a liberdade em altíssima consideração, e mesmo como o centro de sua razão de ser.”

Para Agier, os anos da pandemia condensaram tensões que ressurgem quando se fala de liberdade de movimento e de liberdade de circulação. Um tempo, ele afirma, em que os discursos políticos da imunidade se confundiram com o discurso da segurança, em que a biopolítica opera na aceitação da renúncia à liberdade em nome dessa suposta segurança.

“Sim, isto às vezes é ‘indiscutível’, o sabemos por experiência ‘vital’. Ainda assim, qualquer democrata deve se preocupar com esta politização da imunidade, em outras palavras, com qualquer perda de liberdade em nome da segurança. Em democracia, a unanimidade é sempre preocupante, justamente porque esconde uma perda de liberdade, neste caso, a liberdade de expressão. Isto deve nos lembrar de permanecer vigilantes: uma política do medo pode ser estabelecida a qualquer momento. Ademais, o que vimos com a pandemia é uma característica permanente das sociedades, isto é: o medo em geral se concentra em tudo que vem ‘de fora’ – fora da casa, da comunidade ou da nação, confirmando a problemática do medo ‘dos outros’, com a figura do estrangeiro como inimigo ou perigo”, afirma o pesquisador.

Desse modo, para Agier, questiona-se o significado da carnificina de migrantes no Mediterrâneo e nas portas da Europa em geral, com mais de 55 mil mortos desde 1993, além da própria formação da população europeia na atualidade, na medida em que se considere também o que chama de “segunda morte” dos sobreviventes – isto é “a morte social, através de sua rejeição e sua reclusão em campos de refugiados, de migrantes ilegais, ou em acampamentos nas fronteiras”.

Agier enunciou também sua pesquisa acerca da noção de “indesejabilidade” na historia e na atualidade. “A palavra ‘indesejável’ não designa uma categoria social ou econômica, ela é política, no sentido de que expressa uma relação assimétrica entre uma entidade ou uma pessoa que tem o poder de nomear e dominar, de submeter ou excluir, e outra que é pensada, eventualmente nomeada e tratada como pertencente a esta figura, que, no entanto, nada diz sobre sua identidade.”

E finalizou afirmando: “A partir desse quadro, a reflexão conduz ao lugar do racismo nas democracias contemporâneas. A atribuição racial é o instrumento mais constrangedor, tão absurdo quanto violento, da reificação e, sobretudo, da naturalização da imagem do/da indesejável. Nessa operação, que naturaliza e congela a alteridade indesejável, os detentores do poder mobilizam todo o conhecimento ocidental, pós-colonial, sobre a alteridade racial.”

Distribuição de comida em Cabul para refugiados afegãos. Fonte: https://www.projetocolabora.com.br (Foto: Wakil Kohsar / AFP – 09/08/2021)

Quem são

Quem são os indesejáveis aos quais Michel Agier se refere em sua palestra “As duas mortes e a vida d@s indesejáveis”? A professora Maria Rosário responde: os africanos “subsaarianos” no Marrocos, onde ONGs atendem aos apelos dos governos europeus e marroquino e se encarregam da retenção dos considerados clandestinos; são também os colombianos deslocados pela guerra no interior do país e que são compelidos a ocupar espaços públicos com proteção diplomática, para se fazerem ouvir fora do país e não serem expulsos; são ainda os “representantes de refugiados” de diferentes países – Ruanda, Sudão, Congo-Brazzaville e República Democrática do Congo – que ocuparam a Agência da ONU para refugiados  (ACNUR), em Angola, em agosto de 2002, e pediram, no parlamento angolano, “condições de vida decentes”; são os refugiados afegãos recolhidos pelo cargueiro soviético Tampa, em 2001, no Oceano Índico, perto da ilha australiana de Christmas, e que foram transferidos para territórios próximos, na Nova Zelândia e na ilha de Nauru, no Pacífico, sob a recusa de acolhida por parte da Austrália, entre muitos outros deslocados internos, refugiados e clandestinos.

A título de proteger os seus cidadãos, Rosário afirmou: “esses mandatários veem os ‘indesejáveis’ como ameaça à seguridade social e à identidade dos seus países, em face do que a adoção de políticas do medo se impõe, com controle massivo de manifestações, presença ostensiva da polícia nas fronteiras internas da Europa, fechamento dos portos para impedir a entrada de navios conduzindo refugiados e várias outras medidas repressivas”.

Para Rosário, portanto, é assim que o imaginário europeu reage à suposta ameaça representada por “um estrangeiro abstrato, construído pelo medo, e que não é alcançado pelos direitos humanos que os países europeus erigiram como valores universais. Uma espécie de medo político, fomentado pelo temor ocidental de revanche por parte daqueles – os deslocados internos, refugiados e clandestinos contemporâneos – que foram vítimas do seu domínio e colonialismo” finaliza a antropóloga.

Refugiadas colombianas. Fonte: https://www.flickr.com/photos/acnurlasamericas/7538799150

‘Cabeça de gelo’ é preciso

O professor Livio Sansone, titular do Departamento de Antropologia da UFBA e pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais da FFCH/UFBA, integrou a Mesa e afirmou que ao se falar hoje de migração, sobretudo ilegal, assim como de fronteiras, “é difícil manter a ‘cabeça de gelo’, mas é preciso, inclusive porque não há soluções fáceis à migração no mundo. Imigração é um campo de estudo e de intervenções sempre ameaçado pelo uso estratégico do exagero, por exemplo por arte dos demógrafos, por um lado, e do romantismo, por exemplo, por parte de líderes na política progressista, por outro lado.”

Sansone declara que o migrante cria medos, no plural, na pirâmide da sociedade que os hospeda. “Ele é rejeitado no Sul da Europa, onde há informalidade, cuja europeidade sempre esteve em risco, e também nas sociedades do welfare, onde é difícil admitir um grande aumento do universo dos deserving poor”, explica Sansone. “Graças ao sucesso dos esforços de todos aqueles que em vários contextos atacaram as forças sindicais e de classe, o mundo está, infelizmente, se definindo como um jogo de soma zero: perdeu-se a noção de bem universal e de bem comum como algo possível. A riqueza e o bem-estar são aqueles que existem, não haveria como fazer crescer este bolo, e a questão é se ter uma fatia dele, mesmo que pequena, mesmo que ilegalmente”, avalia.

Para Sansone, com a derrota de uma possibilidade de um avanço da sociedade como resultado da luta de classe, sobra hoje a “luta entre povos”. “Eu volto a famosa frase de Marx: comunismo ou barbárie; a luta de classe humaniza, a luta entre povos desumaniza. Preocupa-me, na Europa, o quanto os progressistas não mais conseguem falar uma linguagem, com relação aos direitos dos imigrantes, que interesse ou seja simplesmente inteligível à maioria do povo. Limitam-se a se convencer entre si, entre pessoas ilustradas”, observa Sansone.

Congresso UFBA 2023. CEAO 17/03/2023. Foto: Ezequiel Santos.