Políticas afirmativas têm muito a avançar nas universidades e na sociedade, apontam debates no Congresso UFBA 2023

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*Thaís Vieira Costa, monitora do Congresso da UFBA

_DSC1183Aristides Alves / Comunicação UFBA

As políticas de ações afirmativas nas instituições de ensino superior, incluindo a Universidade Federal da Bahia, além de seus percursos de implementação, os diálogos com movimentos sociais e as perspectivas para o presente e futuro foram temas abordados no Congresso UFBA 2023. As discussões trouxeram o panorama e a importância para a sociedade das políticas de reserva de vagas na Universidade.

Com a participação dos pró-reitores de Ensino de Graduação, Nancy Rita Ferreira Vieira, e de Desenvolvimento de Pessoas, Jeilson Barreto Andrade, e mediação da Assistente social e Presidente da Comissão Permanente de Heteroidentificação Complementar à Autodeclaração (CPHA), Juliana Marta Santos de Oliveira, ocorreu a mesa “Cotas na Graduação e nos Concursos da UFBA: Resultados, Perspectivas e Desafios”, no dia 16 de março, no Auditório do Instituto de Matemática e Estatística.

O debate teve como objetivo discutir as ações de implementação de políticas afirmativas na UFBA. Como A pró-reitora Nancy Vieira recordou que a UFBA implementou a política de cotas no vestibular a partir de 2005, tendo sido uma das pioneiras entre as universidades, uma vez que a lei de cotas no ensino superior e nível médio só seria sancionada em 2012 (lei 12.711). A pró-reitora acredita que a UFBA serviu de inspiração para a lei, devido ao seu histórico de inclusão de ações afirmativas na sua forma de ingresso.

Vieira destacou, como princípios norteadores para a política de cotas na UFBA, a igualdade e a permanência no ensino superior, atendendo à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e também a tratados, acordos e declarações tanto no âmbito nacional e internacional, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Assim, percebe-se o diálogo que a instituição realiza entre a sociedade e suas demandas no que tange aos direitos de equidade e acesso ao ensino superior.

Outro dado importante em que a UFBA se destaca, segundo a pró-reitora, é o fato de ter sido a primeira universidade pública a implementar uma política de reserva de vagas por critério de gênero, direcionada às pessoas transexuais e transgêneros, afirmando seu compromisso com as pautas, reflexões e encaminhamentos mobilizados pelos movimentos sociais, seguindo os ritos da autonomia universitária.

Em relação às políticas de cotas na UFBA, Vieira revela que há três momentos de implementação: o primeiro se dá entre 2005.1 a 2012.2, com 5 categorias de cotas; no segundo momento, quando a lei 12.711/2012 foi sancionada, a UFBA passou a ter 7 tipos de cotas, incluindo o fator de renda; no terceiro momento, a partir de 2017.2, a instituição passa a ter 12 modalidades de cotas, incluindo pessoas com deficiência e vagas supranumerárias voltadas para indígenas, quilombolas e transexuais. Dessa forma, há “um forte compromisso da universidade com os princípios do Estado”, resume a pró-reitora.

Observe-se como resultado destas políticas que entre os semestres de 2016.1 e 2022.2 a porcentagem de graduados por ampla concorrência foi de 56% e graduados por cotas de 43%, números que resultam também das políticas de permanência adotadas pela universidade e destinadas aos alunos cotistas. Sobre a implementação das reservas de vagas nos concursos públicos a partir da lei 12.990/2014, que exige que os concursos públicos da administração federal devem reservar 20% de suas vagas para candidatos declarados negros, o pró-reitor Jeilson Barreto afirma que, apesar de a lei ter sido promulgada em 2014, foi somente em 2018 que a UFBA implementou em seus editais a reserva de vaga para esses casos. Barreto enfatizou a crescente incidência de profissionais negros na Universidade, com  percentuais bastante expressivos de servidores e técnicos-administrativos.

O pró-reitor ressaltou “o procedimento de heteroidentificação como combate à fraude”, já que, infelizmente, há uma frequência de pessoas não negras que buscam, ilegalmente, ocupara as vagas reservadas. Além das fraudes, o pró-reitor apontou ainda a existência de questionamentos judiciais à autonomia da universidade em seus processos de heteroidentificação. No decorrer da mesa, foi citada a importância dos movimentos sociais e estudantis na criação das políticas afirmativas e suas implementações nas universidades, como diz Juliana Marta: “A gente precisa do DCE, dos movimentos sociais para valer nossos direitos.”

Perspectiva Sankofa

A mesa “A Perspectiva Sankofa na Avaliação das Ações Afirmativas: Reconhecendo o Passado do Povo Negro para a Implementação das Ações Afirmativas” teve como participantes o representante da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PRPPG) Marlos André Pereira de Jesus, e da promotora de justiça do Ministério Público do Estado da Bahia Lívia Maria Santana e Sant’Anna Vaz. Com mediação da assistente social e presidente da Comissão Permanente de Heteroidentificação Complementar à Autodeclaração (CPHA- UFBA), Juliana Marta Santos de Oliveira, o debate ocorreu no dia 17 de março, no Auditório do PAF III.

Importante lembrar dos possíveis significados da palavra Sankofa, símbolo adinkra (denominação de um povo africano originário da África Ocidental) que estabelece essa relação de rememorar e ressignificar o passado para construir o futuro. Foi através do panorama traçado pelos debatedores em relação aos percursos das políticas afirmativas que a mesa buscou, na memória de ações passadas, perspectivas para uma construção coletiva das políticas afirmativas e de inclusão.

No decorrer da mesa, Pereira refletiu sobre como as pessoas negras vivenciam a solidão racial na Universidade e constroem espaços de resistência, o que ele chama de “quilombos educacionais”. Para ele, “ninguém é pai e mãe das políticas afirmativas”, na medida em que elas foram construídas coletivamente por movimentos sociais, principalmente o movimento negro, com mais ou menos apoio de partidos políticos – e, no caso da Universidade, seguindo os ritos próprios da autonomia universitária.

Para promotora Lívia Santana, é preciso “construir essa justiça diaspórica, ancestral”, que considera a “cosmopercepção diaspórica, africana”, baseada na representação simbólica do Sankoka, que é um pássaro livre que olha para trás e se alimenta do passado. Assim, é necessário recontar o passado, a história a partir de uma lógica não-ocidental-branca, mas sim baseada em construções coletivas.

Em uma avaliação histórica, a promotora informa que houve leis provinciais de proibição de negros escravizados e africanos livres a adentrar em instituições de ensino. Através da concepção que a educação é um instrumento emancipatório, observa-se com essas leis que a educação foi retirada da população negra. Dessa forma, “cota é medida de reparação histórica”, resume Santana.

A promotora traçou uma interessante analogia entre a a inserção da juventude negra nas universidades, por meio das cotas, e a migração para o exterior da elite branca e o sucateamento do ensino superior – o que, ela afirma, configura racismo institucional, presente também no discurso de meritocracia, que por muitas vezes é descontextualizado e não considera o período de escravidão e suas consequências para o povo negro. Ou seja, “a meritocracia é somente a manutenção do status-quo da elite branca”.

Santana aponta ainda o que chama de “desracialização” da lei de 12.711/2012, na medida em que esta se orienta por critérios econômicos e sociais, sem considerar os quesitos de raça/etnia. O objetivo inicial das medidas de cotas é para incrementar a presença negra nos espaços, garantir e reservar patamares justos dessa presença.

Desta forma, para a promotora, “cota é pouco” em face dos quase quatro séculos de escravidão no Brasil. Como desafios na área de inclusão e igualdade racial, Santana aponta a necessidade de monitorar as políticas afirmativas para ganhar eficácia, incluindo as ações de heteroidentificação, e que as ações afirmativas não se resumem às cotas, relevante pensar em estratégias de permanência das pessoas negras nas universidades em geral.