por Fernanda Tourinho e Paulo Magalhães
Palestras sobre filosofia, racismo e história ambiental da Bahia de Todos os Santos mobilizaram perto de uma centena de pessoas em cada um dos três bares que acolheram o Pint of science, no primeiro dia do evento. Realizado entre 15 e 17 de maio no Barravento, Caranguejo do Porto e RedBurger, o animado festival de divulgação científica é uma criação britânica de 2012/2013 que aportou no Brasil em 2015 e alcançou em 2017 nada menos que 22 cidades do país, Salvador inclusive, com um belo desempenho.
No mundo inteiro, 10 países aderiram à proposta de colocar a ciência por um breve período como tema obrigatório de conversa de bar, sempre a partir das 19h30, aumentando por essa via sua visibilidade pública e a noção de que é possível encontrar um lado irrecusavelmente lúdico no conhecimento científico.
Foi assim que no Barravento, ponto tradicional da Barra, João Carlos Salles, professor de filosofia e reitor da UFBA, valeu-se, a certa altura, em seu intuito de conversar com o público sobre “o que é conhecer?”, de uma brincadeira com garrafinhas azuis de água mineral. O “recurso audiovisual” serviu para ilustrar o que seria uma proposição verdadeira e uma proposição falsa, em sua concepção mais simples (ver reportagem à parte).
Ali perto, no Caranguejo, do outro lado da Avenida Oceânica, o professor de biologia Eduardo Mendes, antes de mergulhar de cabeça na “história ambiental da Baía de Todos os Santos”, contou que sequer sabe nadar, talvez efeito permanente do susto de um caldo que levou em seu primeiro banho de mar, menino recém chegado do interior da Bahia, ali na praia do Cantagalo, nas proximidades dos Mares/Calçada.
E mais adiante, no RedBurger’N Bar, na Pituba, a professora de história Wlamyra Albuquerque definiu como “fogo no canavial” as relações raciais no período pós-abolição, exatamente aquele que merece sua maior atenção de pesquisadora.
O ambiente da Baía de Todos os Santos
Contar a história da Baía de Todos os Santos é, para Eduardo Mendes, falar também da história da formação da Bahia e um pouco de sua trajetória de vida. O professor do Instituto de Biologia da UFBA, tendo por norte a história ambiental da Baía, passeou por esses três âmbitos em sua conversa com uma plateia de curiosos, alunos e colegas da academia no RedBurger, na noite de segunda-feira, 15.
Ele lembrou que essa baía foi descoberta em 1501 pelos portugueses e, seguindo o costume da época de batizar os territórios encontrados com o nome do santo do dia no calendário católico, carregou desde então o “Todos os Santos” de 1º de novembro.
Indo ao passado muito mais remoto, Eduardo abordou a formação do acidente geográfico que viria a se chamar Baía de Todos os Santos aproximadamente 150 milhões de anos atrás, tempo da separação do supercontinente do hemisfério sul, Gondwana, com a formação do que seria a América do Sul, a África e outras terras austrais, e do afastamento também de Laurência, que geraria a América do Norte.
A posição estratégica da Baía de Todos os Santos provocaria sua exploração pelos portugueses durante todo o período da colonização do Brasil. Hoje, além de conter um dos maiores portos do país, a Baía com todas as suas ilhas é considerada Área de Proteção Ambiental (APA) e, desde 2014, é sede da Amazônia Azul, zona econômica exclusiva (ZEE) do Brasil com grandes riquezas e potenciais de uso, assim definida pela ONU em 1982. A Amazônia Azul é uma área oceânica de aproximadamente 4,5 milhões de quilômetros quadrados, que corresponde a cerca de 52% da nossa área continental, dona de notável biodiversidade em paralelo a uma grande vulnerabilidade ambiental.
A Baía de Todos os Santos sofreu as consequências da chamada interferência antrópica na Bahia (quer dizer, das diferentes ocupações humanas de que foi palco ao longo dos tempos), e sua riqueza biológica e histórica está colocada em xeque pela má utilização de seus recursos e poluição. “Acredito que os dois principais problemas da Baía hoje são o alto nível de poluição e a fragmentação de suas águas por conta do uso exagerado das bacias do Subaé, de Jaguaribe e Paraguaçu”, disse Eduardo Mendes. Essas duas ações combinadas produzem a perca da diversidade ambiental, juntamente com a invasão de espécies exóticas.
Fogo no canavial
As relações raciais no período pós-abolição foram “fogo no canavial ”, disse Wlamyra Albuquerque, historiadora dedicada aos temas do escravismo e pós-abolição, racialização e cidadania negra no Brasil, à sua plateia no RedBurger, na noite de segunda feira. A pesquisadora percorreu páginas da imprensa e arquivos policiais para descobrir que a ideia costumeira de que a abolição da escravatura no Brasil foi pacífica, tranquila, “de boa”, não passa de um mito.
“Muitos escravos pegaram suas indenizações à força, furtaram bens e resolveram suas questões diretamente com o antigo senhor, chegando às vias de fato. Alguns relatos do passado parecem situações saídas de um filme de Tarantino”, disse ela, depois de lembrar que, ao fazer seu doutorado em história social da cultura na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), teve dificuldades com o conceito de raça, oriundo da biologia e costumeiramente utilizado pelos sociólogos, não pelos historiadores, que só se apropriaram desse debate mais recentemente, cerca de 15 anos atrás.
Levando o debate à atualidade, Wlamyra observou que a ideia de raça é presente e atuante nas relações sociais cotidianas. “Somos lidos pelo nosso pertencimento racial”, mas o brasileiro tem “preconceito de ter preconceito”, ou seja, “ninguém é racista, mas todo mundo conhece alguém que é”. Assim se produz, em sua visão, uma estatística que logicamente não fecha seus números. Embora haja particularidades na visão de raça em cada contexto sócio-histórico, a dificuldade de encarar o racismo não seria exclusividade brasileira. Wlamyra citou o recente boicote e onda de cancelamentos de assinaturas da Netflix por segmentos sociais que teriam se sentido incomodados com o seriado de título irônico “Dear white people” (cara gente branca), que põe em pauta os micro conflitos raciais numa universidade norte-americana.
Ao falar das especificidades da ideia de raça no Brasil atual, explicou que a mestiçagem não exclui o racismo – o Brasil vive numa espécie de “pigmentocracia”: “As pessoas de pele mais clara teriam mais privilégios e oportunidades do que as pessoas de pele mais escura, de forma progressiva, em todos os níveis sociais”. Abordou os problemas e contradições do mapeamento genético, por exemplo, que identifica o percentual de ancestralidade, bem como as regiões de origem dos antepassados de cada um, e confessou seu choque quando, ao fazer o teste certa vez com um amigo, constataram que ela, que é negra, não seria geneticamente negra, enquanto seu amigo branco seria. “Como a discriminação se dá pelo tom da pele e pelas características físicas, este mapeamento não faz muito sentido em uma realidade como a nossa”, afirmou.
No debate com o público, Wlamyra defendeu as cotas raciais, citando pesquisas que demonstram um aumento na produção acadêmica e no número de publicações a partir da entrada de estudantes cotistas, ao contrário do que alardeavam seus opositores. “Sou a única professora negra em meu departamento. Isso não é um mérito, é vergonhoso. O negro não deve precisar ser excepcional para estar nestes lugares”, disse.
Questionada sobre denúncias de eventuais casos de fraude envolvendo o sistema de reserva de vagas, admitiu que o critério de auto declaração pode ser problemático, mas é o único possível no momento. Ela não vê com bons olhos comissões de aferição da veracidade da auto declaração, que a partir de características físicas devem determinar se uma pessoa é negra ou não para ter acesso às políticas públicas de ação afirmativa. “Isso seria uma volta a Lombroso”, alertou, em alusão ao famoso criminólogo italiano que acreditava ser possível detectar um “delinquente nato” a partir de suas características físicas e raciais.
A uma indagação sobre a realidade das empregadas domésticas, argumentou que há relações sociais que remetem diretamente ao nosso passado escravagista. As relações afetivas entre patrões e empregados não seriam, em seu entendimento, necessariamente falsas, mas desiguais, e por vezes cruéis. Explicou que o historiador, em seu ofício, se depara com muitas contradições e aprende a não julgar os atores sociais do passado de acordo com os valores atuais, o que seria mero anacronismo. Como exemplo, citou o estudo que atualmente desenvolve sobre Theodoro Sampaio (1855-1937), que se tornou um engenheiro de destaque nacional no Rio de Janeiro, voltou a Santo Amaro para comprar a alforria de seus irmãos, mas compactuou com o sistema escravista. Muitos escravizados conseguiam comprar sua alforria e voltavam a trabalhar com os antigos senhores. “As relações sociais são muito mais complexas do que um certo maniqueísmo simplificador nos quer fazer acreditar.”