Octogenária e contadora de histórias milenares, Vovó Cici torna-se Doutora Honoris Causa da UFBA

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Foto: Ezequiel Santos - Doutora Honoris Causa da UFBA, Vovó Cici de Oxalá.

A Universidade Federal da Bahia (UFBA) concedeu, no dia 12 de julho de 2023, o título de Doutora Honoris Causa à griot octogenária Nancy de Souza e Silva, conhecida como Vovó Cici de Oxalá, Egbomi (autoridade religiosa) do Terreiro de Candomblé baiano Ilê Axé Opô Aganjú. O título, proposto pelo coletivo Netindeafro, do Instituto de Letras da UFBA, foi encaminhado ao Conselho Universitário da UFBA, que o aprovou em sessão realizada no dia 29 de junho de 2023, e se fundamentou nas contribuições inestimáveis que, há mais de 50 anos, Egbomi Cici vem dando às pesquisas de doutorado no campo das ciências humanas na Bahia, bem como ao amplo e público reconhecimento como uma autoridade literária na arte de contação de histórias e transmissão de cultura narrativa africana milenar em nosso estado.

20230712_154916Mesa solene: Da esquerda para a direita: Professora Denise Carrascosa, Vovó Cici de Oxalá, Reitor Paulo Miguez, Vice Reitor Penildo Silva e a professora Alvanita Almeida.

A mesa solene da cerimônia foi presidida pelo reitor Paulo Miguez. Tiveram assento, além da homenageada Vovó Cici, o vice-reitor Penildon Silva Filho, professora Alvanita Almeida, diretora do Instituo de Letras, professora Denise Carrascosa, que, na sua pessoa representava o coletivo que assinou a propositura de concessão do título. Numerosa plateia compareceu à cerimônia formada por autoridades religiosas, filhos e filhas de santo, yalorixás, balarorixás, além de autoridades, estaduais e municipais, membros do Conselho Universitário e diretores de unidades, alunos, alunas, servidores e servidoras da UFBA.

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Vovó Cici de Oxalá foi conduzida, através do Salão Nobre, por um cortejo de religiosas e religiosos do candomblé, todos de branco e carregando flores, sendo aplaudida de pé e louvada pelo toque dos atabaques regidos por Iuri Passos, professor da Escola de Música da UFBA.

A professora Alvanita Almeida disse que esperava fazer jus àquela tarefa e responsabilidade de representar uma comunidade, “agora já um pouco – ainda muito pouco – mais diversa, com rostos mais representativos do que é a cidade mais negra do Brasil”. Aproveitou para registrar a iniciativa da Netindiafro, informando que, na estrutura do Instituto de Letras, o Núcleo reúne docentes de forma inter, multi e transdisciplinar, com o objetivo de investigar, produzir e difundir, de forma colaborativa, conhecimentos inter/transculturais indígenas, africanos e afrodiaspóricos no ensino, pesquisa e extensão.

20230712_165214Plateia lotou o Salão Nobre da Reitoria da UFBA.

Travessia encantada

Depois de pedir ‘bença’ aos mais velhos, aos seus iguais, mentores e àqueles que ainda virão e “humildemente apresentar os meus agradecimentos”, Vovó Cici compartilhou o título recebido com todas as pessoas que caminharam com ela “em épocas não tão longínquas, empunhando uma bandeira de liberdade e compreensão, durante os anos de ferro em que ficamos aprisionadas sem grades e sem correntes e íamos para as escolas de manhã ou de tarde, porém à noite eles chegavam e, à base de pancadas, nos expulsavam das nossas salas de aula, em 68, 69, 70, fugindo, fugindo sempre, correndo, correndo sempre”.

A griot lembra que, daquela época, não conseguiu diploma, mas que o consegue agora e, também por conta disso, oferece o título à memória daqueles e daquelas que correram junto com ela, mas ficaram no caminho. “Suas memórias estarão sempre gravadas na história do nosso tempo (…) são coisas que vão ficar para a minha vida, para meu espírito, pois tudo passa, mas aquilo que é amor, aquilo que é carinho, é para a toda vida, para esse mundo e para o outro, agente leva”, ensina a Vovó Cici.

Continuando, ela diz que essas pessoas lembraram a ela que com as histórias que conta do povo iorubá, do povo do candomblé e da cultura afro tradicional, estariam também segurando esse título junto com ela “portanto, a todas as minhas filhas e filhos, netos e netas do meu coração, eu agradeço a todo meu povo de axé e ao meu povo de ifá, a todas as pessoas que sonham com um mundo em que nossas histórias sejam valorizadas, assim como todas as pessoas sejam valorizadas e respeitadas”, agradeceu, emocionada.

Já encerrando, ela conta, canta e dança uma história que chega até nós, transmitida pela oralidade, história que encanta a toda a numerosa plateia presente. Finalizando diz:

“Essas histórias que chegaram um dia dentro de um navio negreiro e que hoje eu posso contar que seja passada para outros, porque a essência da vida está no amor, no carinho, na forma de se unir. Que sejamos sempre unidos, porque a união como vocês mesmo dizem faz a força, mas vamos fazer com consciência”, propõe.

Vovó Cici e o Reitor Paulo Miguez.

Rico baú

O reitor Paulo Miguez afirmou que as cerimônias de concessão de títulos, junto com as cerimônias de posse, são as mais belas, porque reafirmam a vocação democrática da Universidade, que abre as suas portas e reconhece que só será grande no dia em que puder incorporar todos os saberes.

Miguez acrescentou que essa cerimônia de outorga do título de Doutora Honoris Causa à vovó Cici reveste-se ainda de outro caráter especial, que é o encerramento das comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil na Bahia e dos 77 anos da Universidade Federal da Bahia, comemorados no dia  2 de julho. O reitor disse à griot que, na cidade do Salvador, na Bahia, “independência e educação se solicitam, caminham juntos, não podem estar separadas. É também momento único porque nos empresta luzes solares para deixarmos, definitivamente para trás, tempos sem luz, tempos sombrios: é com alegria imensa que o branco de Oxalá e o marrom de Xangô Aganju, eu tenho certeza, despacharão os tempos sombrios”.

O reitor lembrou também que vovó Cici chega para ocupar um lugar muito especial no Pantheon daqueles que a Universidade Federal da Bahia homenageou, ao longo dos anos, com o mesmo título, quais sejam o Mestre Didi, e as yalorixás, Stela de Oxossi e Mãe Menininha do Gantois, como garantia que na UFBA a hostilidade não prosperará “porque esta casa estará sempre vovó, no bom combate contra o racismo e  contra a intolerância”.

“A senhora chega trazendo um belo baú de histórias. A sua chegada nos enriquece e aumenta o (nosso) compromisso com as boas lutas que poderão em algum momento nos afastar em definitivo da intolerância, do racismo, do fascismo. Muito obrigado pelas histórias que a senhora vai fazer com a sua presença na condição de Doutora Hororis Causa da Universidade Federal da Bahia, fazendo essa casa mais rica e mais, propriamente, uma casa que saberá contar histórias. Sua Bença, vovó. Axé!”, concluiu o reitor.

Vovó Cici de Oxalá.

Contar para não deixar morrer

A professora Denise Carrascosa realizou as entrevistas que constam do Memorial  que justificativa o pedido de concessão do título à griot  Vovó Cici. O conteúdo na sua íntegra foi lido pela professora na cerimônia de outorga. O texto, bem como toda a cerimônia podem ser conferidos neste link.  Aqui fazemos apenas alguns recortes que, encadeados,  contam um pouco dessa trajetória da homenageada, entre a cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu, e Salvador, onde se tornou Doutora pela UFBA. As informações são todas da professora Denise.

Nascida em 2 de novembro de 1939, na cidade do Rio de Janeiro, Nancy de Souza e Silva vem para a Bahia se iniciar no candomblé no ano de 1972, no Terreiro de Candomblé baiano Ilê Axé Opô Aganjú, liderado pelo Babalorixá Balbino Daniel de Paula, publicamente conhecido como Obarayí, o qual, por sua vez, havia sido iniciado por Mãe Senhora, no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Vovó mora no Terreiro de Pai Balbino de Xangô por 34 anos, onde, além do cumprimento de suas obrigações religiosas, aprende sobre os Orixás e conhece o pesquisador Pierre Verger – Obá de Xangô da roça, trabalhando para se sustentar, na época, como cobradora de ônibus, durante quase 20 anos, no bairro de Mussurunga.

Mas ainda no Rio de Janeiro, Vovó Cici precisava ajudar a mãe, que era dona de pensão. Para ajudar, ela teria a opção de tomar conta da pensão ou cuidar dos irmãos menores: “A menina dormia, porque eu balançava no colo e o menino dormia, porque eu balançava no carrinho (ela mostra seu movimento de pé para balançar o carrinho). Eu cantava e contava histórias”.

Vovó Cici ensina que a expressão  griot,  foi dada pelos colonizadores franceses na África Ocidental, para nomear os homens que contam histórias aos meninos para fazer a transmissão da cultura. Eles vêm de tempos imemoriais e têm a responsabilidade de não deixar sua cultura morrer:

Vovó também ensina que quando a pessoa nasce ela já escolheu o seu caminho, mesmo que o desconheça. E conta: “Disse que pegaram uma criança negra e uma criança branca e deram um leque na mão de cada uma. A criança negra fez isso (gesto abanando para as laterais). A criança branca fez isso (gesto abanando para o próprio peito). A civilização africana tem em um de seus valores a amplitude, não o egoísmo”.

Além dos cursos de artes, capoeira, esportes, leituras, Vovó ministra o curso Cozinhando Histórias, ensinando a forma de feitura de alimentos da culinária de santo e revela as histórias associadas a cada prato e os enredos dos Orixás aos quais são devotados.

Para a professora Carrascosa, Vovó Cici de Oxalá é uma educadora no sentido mais amplo e transdisciplinar que se possa imaginar; uma orientadora de inúmeras teses de doutorado nos mais diversos campos do saber: literatura, música, dança, antropologia, sociologia, filosofia, política gastronomia, capoeira, moda, fotografia, belas-artes, história, direitos humanos.

“Sobre a historiografia das religiões de matriz africana e as famílias de santo da Bahia, Vovó Cici, Egbomi e autoridade religiosa respeitada, segue a linhagem de memória ancestral de grandes matriarcas, Yalorixás, cujas linhagens estabeleceram os caminhos rituais de muitos terreiros de candomblé nesta terra: Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Yemonjá são algumas destas grandes senhoras que nos iluminam os caminhos com seus saberes milenares…”  nos informa Denise.