“O problema de qualquer pesquisa é que você tem que parar em um determinado momento. É quando você sente que, apesar dela, da pesquisa, não estar totalmente madura, ela tem um início, um meio e um fim possível. Eu acho que estou me aproximando de onde eu quero, ou melhor, para onde eu preciso ir, com esse personagem. Mas, como eu disse, ainda estou na ponta do iceberg. Eu já cheguei à vida pública dele mas, nos bastidores, eu ainda não penetrei.”
Assim o historiador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), João José Reis, começa a sua conversa com o Edgardigital, depois da conferência que proferiu no dia 9 de novembro de 2023, no Centro de estudos Afro-orientais (Ceao) como parte da programação do Novembro Negro da UFBA. A conferência foi sobre o professor, abolicionista e ativista negro Sabino José dos Santos Jr. (1865-1930) que está sendo biografo por Reis – que apresentou, durante a palestra, um resumo das primeiras 40 páginas do seu trabalho.
Apresentar o que já está feito, como capítulos de uma biografia ainda em processo de conclusão, como uma obra em andamento, é, para Reis, o momento de ouvir perguntas que, posteriormente, “botam a gente pra pensar”, clarear ideias. O que se segue é um desses momentos, no qual Edgardigital perguntou e o pesquisador ouviu e respondeu, sobre o seu mais novo personagem, que ele classifica como um “homem de convergência”, por conta dos tantos movimentos que fez pelo Brasil, antes, durante e depois da abolição da escravatura, em 1888, o que movimentou a sua própria existência, vivida entre a Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, onde morreu, em 1930.
Uma pré-história
O personagem central da biografia, na verdade, nem é Sabino José dos Santos Jr. Ele é um personagem acessório, que apareceu porque se casou com a neta do personagem principal, Manoel Joaquim Ricardo (1775-1865), africano haussá, grande negociante, homem muito rico, que morreu no ano em que Sabino nasceu. Do casamento de Manoel Ricardo com Rosa Maria da Conceição (1809-1885), africana nagô, nascem três homens e duas mulheres. Uma dessas mulheres é Benta Maria do Espírito Santo (1834-1886) que se casa com Manoel Florêncio do Espírito Santo (1836-1896), professor de primeiras letras muito famoso e estimado, que, ao se aposentar, funda o Colégio Florêncio no mesmo casarão onde depois passaria a funcionar o Colégio Ipiranga, na rua do Sodré no 42, em Salvador – onde viveu os últimos anos de vida e morreu o poeta Castro Alves.
Dessa união, muitos filhos nascem e morrem, menos um, de nome Mário, e sua irmã Adelaide Florêncio dos Santos (1867-1913), que viria a se tornar a esposa de Sabino José dos Santos Jr. (1865-1930), personagem da biografia. Essa pesquisa de João Reis sobre o africano escravo que virou escravocrata foi publicada em 2016 pela Revista de História da USP, no artigo “De escravo a rico liberto: a trajetória do africano Manoel Joaquim Ricardo na Bahia oitocentista”.
Procurando Sabino
A mãe de Sabino Jr., Severiana Batista dos Santos, era costureira. O pai, Sabino José dos Santos Filho, era marceneiro, figura muito ativa e bem inserida na classe dos marceneiros, tanto ao nível social quanto político, tendo sido indicado, inclusive, a deputado, por sua popularidade e visão crítica. Pensava que as classes, para serem fortes e representativas, precisavam ter representação política – isso em meados da década de 1870.
Foi nesse ambiente que nasceu Sabino, que, apesar do costume na época, não seguiu a profissão dos pais, que investiram na carreira acadêmica do filho. Em 1884, ele viaja para estudar Direito em Pernambuco, de onde só retorna em 1888, pouco antes da abolição da escravatura, sem antes deixar em solo pernambucano sua marca de abolicionista, criando com colegas negros da Escola e artífices locais uma sociedade abolicionista com características de inserção social e racial. Os estudantes moravam todos juntos, em uma república conhecida como “dos negros”. Entre eles, colega de Sabino e futuro primeiro deputado federal negro do país, o pernambucano Monteiro Lopes.
Briga no interior
Quando Sabino retorna do Recife, é logo indicado para promotor e vai trabalhar em uma cidade do interior da Bahia, muito distante da capital. Lá se desentende com o juiz local, seu superior, que o acusa de não estar presente durante um interrogatório, o que aparentemente, sugeria uma perseguição de um juiz branco a um promotor negro. Durante uma das sessões do júri, Sabino invoca em sua defesa o criminalista italiano Cesare Lombroso (1835-1909) o grande “guru” dos cientistas racistas da época, conhecido em países, como no Brasil, onde já se pensava sobre a desigualdade das raças. O professor João Reis chama a atenção para a apropriação da teoria da criminalidade, nascida do positivismo penal, por um promotor negro que estava sendo acusado por um juiz branco. Isto no fundo, talvez só para dizer: “Eu sou um erudito, essa é a última palavra em ciência criminológica, eu conheço, eu li, acabo de estudar na Faculdade de Direito do Recife”.
Casamento, separação e Rio
Voltando para Salvador, Sabino se casa com Adelaide Florêncio dos Santos, a filha do professor Florêncio, em 1891. Quatro anos depois o professor morre e, na divisão dos bens, Adelaide fica com o colégio Florêncio, mas, naturalmente, quem termina herdando, na prática, é o marido dela, que vai se tornar professor e diretor da escola.
Sabino se comporta como um grande reformador humanista, ampliando o número de disciplinas administradas, introduzindo o ensino de línguas estrangeiras, incluindo o latim, além de aulas de música e de artes plásticas. Ele permanece como diretor da escola até o inicio do século XX e, em 1902, faz o que o professor João Reis considera “uma misteriosa viagem”, que vai resultar em uma residência permanente no Rio de Janeiro até a sua morte. Ele viaja sem a mulher, o que caracteriza um processo de separação cujas razões ainda são desconhecidas, e só retorna em 1913, provavelmente por conta da morte da esposa Adelaide, talvez para uma nova partilha de bens, o que também ainda não é certo.
Duvidas de pesquisador
“Sabino, ele me escapa ainda, exatamente porque me faltam elementos cruciais Eu sei porque ele foi para o Recife, por exemplo, foi para estudar. Aí eu não tenho a menor dúvida sobre isso. Agora, por que ele deixa uma posição tão confortável e estável e de uma certa maneira lucrativa, num dos melhores colégios da Bahia, para ir tentar a vida no Rio de Janeiro? O que ele busca, entendeu? Aqui, ele tinha uma esposa, era diretor de um colégio muito bem-sucedido. Era querido, bem relacionado, com passagem positiva pela imprensa, celebrado por alunos e professores, que fazem até festa de aniversário para ele. E ele deixa tudo isso para ir para o Rio de Janeiro. E aí eu volto a perguntar: ele estava fugindo de alguma coisa? Ou ele estava buscando alguma coisa, do que ele estava fugindo? O que ele estava buscando?”, interroga João Reis.
O Rio da bela época
O que o biografado encontrou no Rio de Janeiro foi uma vida agitada, que é a que ele passa a viver. Muito mais do que quando esteve como estudante na Faculdade de Direito, no Recife, ou do que quando esteve como professor e diretor de escola, na Bahia, onde levava uma vida tranquila. No Rio, por vezes no mesmo dia, ele fazia duas palestras em locais diferentes, além de discursos praticamente toda semana. Ao mesmo tempo, atua como advogado de diversos clientes: defende grevistas, mas defende também gente que cometeu algum crime.
Sabino deixa Salvador, uma cidade ainda provinciana, e vai para uma cidade dinâmica, capital da República, onde tudo acontecia, um lugar rico, que então renovava sua população de maneira muito rápida, através da chegada dos imigrantes europeus, que passam a constituir a principal força de trabalho, formando mais da metade da mão-de-obra trabalhadora do Rio de Janeiro nessa época. Claro que havia ainda muita gente nascida no Brasil, a população negra, também participando da classe trabalhadora. É o Rio da belle époque, das grandes reformas de Pereira Passos, prefeito do Distrito Federal de 1902 a 1906, da construção da Avenida Rio Branco, do “bota abaixo” dos cortiços, por um lado, e da formação das favelas, por um outro.
Punjança negra
É o Rio de uma cultura negra pujante, da qual Sabino, de alguma maneira, participa. No mesmo ano da sua chegada, ele é contratado para ensinar direito comercial marítimo em uma escola da marinha mercante, da qual também se torna representante oficial e orador, o que denota que ele estava reproduzindo, no Rio, a característica da oratória do tempo de abolicionista no Recife. A escola onde passa a ensinar ficava na chamada “pequena África”, onde estavam reunidas as baianas que foram para lá abrir as suas as casas de candomblé e formar os “cordões”, que viriam a se tornar os embriões das escolas de samba, com as suas indispensáveis e belas “alas das baianas”. E mais que isto, Sabino torna-se o orador oficial da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, discursando, durante 30 anos, em todas as solenidades do 13 de maio, comemorativas da Abolição e do 28 de setembro, em comemoração à promulgação da Lei do Ventre Livre.
Essas seriam as suas primeiras atividades como militante pós-abolição, dentro de uma irmandade que representa fortemente a cultura ancestral da população negra do Brasil. A militância, na época, era pela integração racial, não contestatória, mas de acolhimento de aliados brancos, de preferência “poderosos”, para combater aquilo que chamavam de “preconceito”, que oxigenava o cativeiro moral, dos cativos libertos. Mas quando Sabino começa a circular nesse “meio negro”, ele já não é mais cliente de nenhum poderoso branco, como talvez tivesse sido o seu impulso originário, embora continue em convívio pacífico, advogando para brancos inclusive. Em seguida, agrega a militância operária, na Confederação das Classes Operárias, da qual se torna membro e logo em seguida orador, como acontece em diversos outros sindicatos e organizações, seculares ou não, como na União Operária do Engenho de Dentro.
O que ele gostava mesmo era de falar, dessa oratória, do contato com grandes plateias e também junto às multidões como durante discurso no funeral de José do Patrocínio (1853-1905), em nome da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de cima de uma sacada para uma grande multidão que compareceu às exéquias do conhecido abolicionista. Participou ainda do comitê pela candidatura de Ruy Barbosa, provavelmente à Presidência da República, pela segunda vez, isso já em 1919; e da Confederação dos Homens de Cor, cuja finalidade era trabalhar pelo desenvolvimento dos afro-brasileiros.
Bloco Carnavalesco Heroes Brasileiros
“Bom, eu queria terminar também com uma nota festiva porque, aparentemente, Sabino fazia parte de um bloco de carnaval chamado Heróis Brasileiros. A não ser que não seja ele na foto, mas eu desejo que seja”, acrescenta João Reis, reafirmando que ainda não descobriu uma foto, uma imagem sequer do seu mais novo biografado.
E encerra sua exposição, mostrando o slide do atestado de óbito de Sabino Jr., lavrado no Rio de Janeiro, em 1930. No atestado aparece o endereço onde ele morava na época: Rua Romana, zona norte da cidade. Embora só tivesse morrido pouco depois da chamada Revolução de 30, desaparece da vida pública muito antes – a única menção impressa da morte dele, por exemplo, é através da nota de um jornal que noticia que, durante uma sessão do Fórum onde Sabino atuava constantemente, suspendeu-se por um momento uma determinada sessão para homenagear o falecido. Não se sabe sobre mobilizações para as exéquias, só que foi enterrado no São Francisco Xavier, o Cemitério do Caju, sem as honras de um abolicionista, “o que é muito triste porque, assim como ele, muitos outros negros estão em um quase anonimato até que pesquisas como esta os “ressuscitem”, lamenta João Reis.
Quatro falas finais do pesquisador sobre “personagens sedutores”
“Olha, esse ‘cara’ (Sabino Jr.) é um personagem sedutor, o personagem sobre o qual ninguém sabia, daí a originalidade da pesquisa, que tematiza sobre o sogro dele e sobre o sogro do sogro, que é o meu personagem africano. Quer dizer, são todos personagens que estavam enterrados nos arquivos e cujas vidas eu estou tentando revelar.”
“Então esses personagens aparecem no meio de outras pesquisas e vão ganhando tamanho por causa, exatamente, do quanto são interessantes as suas vidas, quantas coisas a gente pode pensar através das suas trajetórias. Trajetória como a de Sabino Jr., tão irrequieta, um abolicionista que passa a integrar uma família que começa com um grande proprietário de escravos, dá um “cavalo de pau” na história, fecha um ciclo.”
“Quando você coloca essa história, está tratando de uma certa camada da elite da população, porque são pessoas excepcionais. Não é a história do homem e da mulher, negros comuns. São pessoas que, exatamente por serem excepcionais, produziram muita documentação, que favorece, naturalmente, ao historiador. É um personagem que consegue ir além de um momento único, de um flash, como se fossem uma aparição; os excepcionais não, deixam rastros”.
“Ele ele era um muitos intelectuais negros que foram bem sucedidos, mas como não ‘deixou obra’ não foi uma pessoa muito reconhecida: é um nome esquecido. Não existe, ele não está na História. Eu faço parte de uma geração de historiadores que querem colocar essas pessoas anônimas na História.”