Autonomia ou servidão? O trabalho na era digital em debate na Reitoria da UFBA

Download PDF
Entregadores por aplicativos: futuro à deriva entre a liberdade e a servidão. Foto: https://olhardigital.com.br.

A UFBA, através do Centro de Pesquisas e Estudos em Humanidades (CRH/UFBA) e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, promoveu, no dia 28 de novembro, no Salão Nobre da Reitoria, a Mesa Redonda “O trabalho na era digital: autonomia ou servidão?”, reunindo os pesquisadores Ricardo Antunes (Unicamp), Ricardo Festi (UnB) e Lawrence Mello (UFBA) e as pesquisadoras Graça Druck (UFBA), Cláudia Mazzei Nogueira (UNIFESP)  e Denise Vieira (UFBA).

O evento foi organizado pelo grupo de pesquisa “Trabalho, precarização e resistência”, do CRH, que reúne pesquisadores do campo da Sociologia do Trabalho da FFCH. Abrindo as atividades da Mesa, a professora Graça Druck apresentou os convidados e agradeceu a colaboração de todas as pessoas envolvidas na realização do evento. Houve também lançamento de livros, entre os quais “Iceberg à deriva: o trabalho nas plataformas digitais” (Editora Bomtempo, 2023), organizado por Ricardo Antunes.

Em seguida, a professora Denise Vieira, representando a Reitoria da UFBA na condição de Chefe do Gabinete do Reitor, saudou os participantes convidados, lembrando que o tema da mesa e do livro do professor Ricardo Antunes “diz respeito às nossas vidas, então nós vamos falar hoje sobre o que estamos vivendo, um tema muito caro para todos nós”.

Foto: https://www.pucgoias.edu.br

Icebergs à deriva   

Durante a sua apresentação, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes explicou que o livro “Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais” é resultado das pesquisas que integram o projeto “Trabalho, tecnologia e impactos sociais: o advento da indústria 4.0”, desenvolvido desde maio de 2019 e que, junto com o seu livro anterior, “Uberização, trabalho digital e indústria 4.0”, ajuda a compreender o fenômeno social do trabalho em plataformas, nesta fase em que, em sintonia com a indústria 4.0, vive-se um momento de expansão sem precedentes, tanto no Brasil, como no cenário global.

Os 28 artigos que compõem o livro foram escritos por diversos pesquisadores e pesquisadoras do Brasil e do exterior, todos com objetivo comum de oferecer uma melhor compreensão desse fenômeno social, “uma mais efetiva compreensão dessa nova realidade social – o trabalho uberizado ou plataformizado, cuja dimensão não para de se ampliar, sem deixar de indicar enorme acentuação durante a pandemia da Covid-19”, segundo o pesquisador.

“Através desta pesquisa, portanto, não temos outro objetivo senão o de oferecer um melhor entendimento sobre uma temática que se torna cada vez mais crucial, tanto no mundo do trabalho quanto no âmbito do direito do trabalho e de sua imprescindível e imperiosa necessidade de regulamentação. E isso somente será possível através de um adequado entendimento e de uma cuidadosa conceitualização para além das mistificações difundidas e propagadas pelo ideário empresarial corporativo, do que de fato é o trabalho uberizado ou plataformizado”, declara Antunes.

Entre os assuntos tratados pelos artigos reunidos por Antunes em “Icbergs à deriva” são a indústria 4.0, controle algorítmico, TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação), inteligência artificial, corrosão do trabalho, terceirização, informalidade e destruição da natureza. Ricardo Antunes declara que estamos vivendo um período que jamais vimos na história da humanidade, “que tem uma profunda similitude entre o trabalho e a natureza”.

“A natureza foi destroçada a um nível pelo sistema metabólico do capital, que não podemos ter ideia, a mais remota, de como serão as nossas próximas décadas. O calor que nós vivemos há 2 semanas no sudeste, o que o Rio Grande do Sul vem passando nos últimos 2 meses, com as chuvas torrenciais e a seca num dos rios mais caudalosos do mundo, o Amazonas, mostram que a humanidade entra no seu momento de mais profunda barbárie. A natureza está destroçada de tal modo (…) que a destrutividade do sistema de metabolismo social tornou (sua) recuperação impossível, a menos que o sistema do capital seja derrotado. Isto é fácil falar, mas é difícil viver”, declarou o sociólogo.

Metáfora produtiva

Para professora e jornalista Roseli Figaro, convidada a escrever sobre o livro, é bastante produtiva a metáfora do iceberg que a coletânea usa para tratar da exploração e da espoliação que as “empresas-plataformas” praticam contra a classe trabalhadora. “Assim como a maior parte do iceberg está imersa, o capital ilude a visão das pessoas, ao afirmar que a tecnologia é que dirige a forma de organização do trabalho e sua consequente fragmentação, intensificação e precarização”, segundo ela.

“Essa ode simula a naturalização da forma do uso da tecnologia pelo capitalista, como se a subsunção humana ao capital fosse intrínseca ao desenvolvimento científico e tecnológico (…) O livro, que ora vem a público, organizado por Ricardo Antunes, com a contribuição de pesquisadores/as que têm se dedicado, há estudos sobre o tema da uberização e/ou plataformização do trabalho, dá uma dimensão do perigo do iceberg que está à deriva. A magnitude e a profundidade da crise humanitária provocada pelo capitalismo financeiro e a plataformizado não tem solução que não seja aquela de conter o iceberg, quebrá-lo e tirar dele o que é de todos: a água doce que pode reverter a indigna situação de vida de bilhões de seres humanos, sem as mínimas condições para a sobrevivência”, declara Figaro, na orelha do livro..

Autores

Participam da coletânea os professores e pesquisadores, Ricardo Antunes (organizador), Marcelo Manzano, José Dari Krein, Alexandre Arias, Fabio Perocco, Icide Gjergji, Pietro Basso, Cristopher Sad, Fabrizio Denunzio, Cílson César Fagiani, Fabio Scolari, Gabriel Fardin, Ricardo Festi, Henrique Amorim, Thiago Aguiar, Guilherme Henrique Guilherme, Geraldo Augusto Pinto, Iuri Tonelo, Giovanni Alves, Vitor Araújo Filgueiras, Jami Woodcock, Paulo Marques Alves, Marco Aurélio Santana, Marco Gomsales, Murillo van der Laan,  Rafael Grohmann e as professoras e pequisadoras, Carolina di Assis, Cáudia Mazzei Nogueira, Denise Vieira, Fabiane Santana Previtali, Daniela Muradas Antunes, Ludmila C. Abílio, Luci Praun, Renata Queiroz Dutra, Mariana Shinohara Roncato, Graça Druck, Isabel Roque, Marcela Soares, Gabriela Neves Delgado, Valéria de Oliveira Dias e Fabiana Scoleso.

O que eles dizem

Para a professora Cláudia Mazzei Nogueira, a ideia do livro, inicialmente, era para que ela e Caio Antunes (filho do sociólogo Ricardo Antunes) “tocassem” um projeto que fosse uma homenagem do Serviço Social para o sociólogo, como referência unânime na área. No entanto, quando os dois começaram as reuniões para pensar a construção do livro, perceberam que  Antunes não era referência só para o Serviço Social, mas para as mais diversas áreas do pensamento crítico. “Daí tivemos que contemplar a área da saúde, do direito, da sociologia, da geografia, do direito e da filosofia, além do serviço social, que conversam, dialogam e utilizam os conhecimentos do pesquisador para as suas reflexões, indispensáveis para quem debate o mundo do trabalho”.

Sobre os entregadores por aplicativos

Já o professor Ricardo Fasti, contou que o capítulo que escreveu para o livro é resultado das pesquisas empíricas que realiza em Brasília com um grupo de trabalho em Teoria Social em particular com trabalhadores de plataformas digitais do Distrito Federal. Ele nos surpreende quando  revela que hoje, quando são feitas as pesquisas com a classe trabalhadora, por exemplo quando são analisadas as respostas às pesquisas  que realizam com os entregadores de aplicativos, depara-se com “questões como supostos conservadorismos, supostas rejeições a direitos”.

Os dados mostram que “lá embaixo” da lista das prioridades para esse grupo de trabalhadores e trabalhadoras estão o limite da jornada diária semanal, a necessidade de um contrato de trabalho, o descanso remunerado, férias anuais remuneradas, enfim a escolha pelas “bandeiras históricas e sindicais da classe trabalhadora” que, nesse recorte, não são mais importantes do que a preservação do trabalho autônomo, do fim das corridas duplas ou triplas, dos bloqueios sem defesa ou do pagamento do percentual de periculosidade.

“Isso faz refletir a precariedade permanente da classe trabalhadora, a influência do neoliberalismo sobre isso(…) e pensar esse mundo do trabalho do ponto de vista estrutural, essa subjetividade que desde o fim da escravidão (demostra) uma certa rejeição ao trabalho subordinado a um patrão”

Fasti informa que a próxima etapa da pesquisa são as entrevistas de profundidade para compreender de onde vieram essas pessoas, por que, que elas escolheram ser entregadores ou motoristas de aplicativos, o que elas desejam para o seu futuro? “E por que, que a precariedade se tornou algo como um horizonte  permanente ou, se, na verdade, não há horizonte para essas pessoas no trabalho.

Violência, assédio e rebeldia

Convidado para compor a mesa, Lawrence Mello aproveitou para destacar dois conceitos que vêm sendo trabalhados na literatura da sociologia do trabalho. Um é a noção de “contra revolução preventiva em escala global, que nos ajuda a pensar o tempo presente academicamente, mas também sempre de um ponto de vista de uma sociologia pública, de uma sociologia militante, de uma preocupação com os problemas reais que enfrentamos”.

Mello cita como exemplo a violência, que para ele avança e cuja compreensão, e resposta exige que não se faça apenas uma análise isolada, em áreas específicas, como no caso do assédio moral, “que ganhou proporções nunca vistas na história das relações de trabalho”.

“Mas mais do que a gente dizer que precisamos de um aumento da responsabilidade individual ou da ampliação do conceito de assédio, me parece relevante compreender as mudanças estruturais dadas pela precarização do serviço público e, portanto, das relações de trabalho na administração pública e a precarização social do trabalho, como um todo”.

Um segundo conceito, segundo o pesquisador, exige pensar um novo modo de vida, não apenas reivindicando responsabilizações individuais descuidando da gramática neoliberal ou mesmo da gramática neoliberal progressista, e deixando de ter, no horizonte, a perspectiva de conhecer “a rebeldia dos de baixo” e de como eles se mobilizam, além de defender com firmeza e com nitidez a necessidade de um outro modo de viver, de envelhecer e de nos relacionar com a natureza.

Outros lançamentos

Finalizando o evento, também foram lançadas outras publicações de mesma temática como Ricardo Antunes-para além do mundo do trabalho, de Caio Antunes e Cláudia Mazzei Nogueira (org); As origens da Sociologia do Trabalho – percurso entre Brasil e França, de Ricardo Festi; Contratrualidades  Espoliativas e lutas coletivas, de Lawrence E. Mello, Graça Druck e Ricardo Antunes e Constituição e Contrato de Trabalho: legalização da violência e desenhos discriminatórios, de Lawrence Mello. Os autores presentes autografaram as obras e conversaram com os presentes.