
Desde março de 2024, Ítala Maria Helena Pellizzari Nandi (1942) – a consagrada atriz Ítala Nandi – ensina Interpretação Teatral na Escola de Teatro da UFBA, por meio do edital para seleção de professores visitantes com Notório Saber. Ao lado de mais cinco candidatos selecionados, a intérprete fez parte do primeiro edital Notório Saber, que faz parte do Programa de Saberes Tradicionais da Pró-Reitoria de Extensão da UFBA (Proext/UFBA). O programa busca fortalecer projetos de Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS), a curricularização da extensão e as relações da UFBA com comunidades, territórios e demais setores da sociedade. O Edgardigital conversou com todos os seis novos professores para a série “Notório Saber UFBA”, começando hoje com Ítala. As fotos que ilustram esta entrevista foram todas cedidas pela atriz, e fazem parte do seu acervo pessoal.
Com 65 anos de carreira artística, Ítala destaca, além da larga vivência nos palcos brasileiros, a importância da experiência no cinema, que a consagrou como atriz, diretora e roteirista, participante em mais de cinquenta festivais de cinema nacionais e internacionais, ela acumula diversos prêmios ao longo da sua vitoriosa e reconhecida carreira. É significativa também a sua participação em famosas novelas de diferentes canais de televisão no Brasil. Entre 1967/68 cumpre Bolsa de Estudos de Teatro em Paris, na França e, em 1980, em coprodução com o governo da Índia, realiza, como diretora, o filme “Índia, o Caminho dos Deuses”.
Em 2003, a atriz recebe Notório Saber pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO) que agora se soma ao reconhecimento do título pela UFBA, resultado do primeiro edital para contratação de professores visitantes com reconhecido notório saber. Em 2008, a nossa entrevistada é admitida na Ordem do Mérito Cultural, no grau de Comendadora da República Federativa do Brasil para, em seguida, criar a sua própria escola profissional de atores: o “Espaço Nandi”, no Rio de Janeiro que, neste 2024, completa 10 anos”.
Gaúcha, natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, nasceu em um lugarejo conhecido como “Nona Légua”, nos arredores da cidade maior, hoje provavelmente um bairro da progressista cidade do interior gaúcho. É filha do italiano Massimo Nandi, que não se naturalizou brasileiro quando veio para o Brasil, com a gaúcha de Caxias, Edite Pellizzari Nandi. Por conta disso, a atriz tem dupla nacionalidade: é ítalo brasileira. Ítala foi casada com diretor teatral Fernando Peixoto e com o cineasta André Faria, pai do seu único filho Giuliano Nandi que, por sua vez, é o pai de Sofia, a única neta da atriz. A nora se chama Hellen Nandi.
Como professora, coordenou por vários anos os Departamentos de Teatro, Cinema e TV da UniverCidade e da Universidade Estácio de Sá, ambas no Rio de Janeiro. Também coordenou a Escola Superior Sul-Americana de Cinema e Televisão do Estado do Paraná (CINETVPR/FAP), com um projeto de ser uma universidade de cinema e televisão nos moldes das instituições cubanas, que ela conheceu pessoalmente, quando esteve em Havana para receber o Prêmio José Marti, do governo de Cuba. Também é idealizadora e fundadora do Festival de Cinema do Paraná.
Autora de livros, Ítala publicou, em 1989, o Teatro Oficina, onde a arte não dormia e, em 2010 lançou o romance futurista Os Sonhos de Vesta, indicado, no mesmo ano, ao Prêmio de Literatura do Estado de São Paulo. Também publicou o livro bilíngue de contos Milagres/Miracoli (2019) e o texto didático Teatro do Início até…. que usa como roteiro em suas aulas.
Nesta entrevista que concedeu ao Edgardigital, (doravante ED), Ítala Nandi (doravante IN) fala da sua nova experiência como professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), da cena teatral, cinematográfica e televisiva do Brasil que, em 1964, venceu os anos de chumbo e que, nos dias de hoje, caminha para a superação de tempos recentes de autoritarismo e negacionismo. Sem perder a ternura, fala do pai, da infância entre parreirais e do primeiro nu do moderno teatro brasileiro.

ED Bom tarde, Ítala.
IN Boa tarde, Carlos.
ED Vamos começar, então, pelo presente. Como está sendo a experiência em sala de aula na UFBA? Você já tinha ensinado em outras instituições?
IN Já, já ensinei em outras três universidades, inclusive em uma que criei em Curitiba (a Escola Superior Sul-Americana de Cinema e Televisão do Estado do Paraná). A experiência é sempre muito boa, sendo que a vantagem daqui é que eu não sou administradora, porque nas outras experiências que eu tive, eu era, além da criadora do curso e professora, a administradora e aí é muito complicado. Fica muito “barra pesada”.
ED Aqui, as aulas são para quantos alunos/as?
IN Na pós-graduação tem poucos matriculados, muito poucos, mas na graduação está de “bom tamanho” e estamos desenvolvendo muito bem o trabalho. Na graduação são 11, o que é bom, muito bom, e na pós são 6 matriculados (no primeiro semestre letivo de 2024).
ED Que disciplina ensina?
IN Em todas as duas turmas a disciplina é Interpretação Teatral e como a interpretação não tem uma definição de dados, isso me permite conversar com eles e perceber o que acho que está precisando. Na graduação são todos bem jovens, em torno de 17, 18 a 21 anos. Já na pós-graduação são todos bem formados (…). Eu comecei as aulas falando sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, porque sei o quanto se estuda pouco a “Semana de 22” nas escolas brasileiras. E, a meu ver, é o mais importante para você conhecer o Brasil, porque nada melhor do que Oswald de Andrade para apresentar o Brasil e o que devemos fazer no Brasil, que é antropofagiar, ou seja, “comer” o que vem de fora e “vomitar” o que é nosso.
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Essa leitura do conceito da “Antropofagia” é recorrente quando se estuda a primeira fase dos modernistas no Brasil e o Manifesto Antropofágico, publicado pelo escritor Oswald de Andrade, em 1928.
ED Qual foi a reação deles, quando descobriram que a professora deles/as também era uma atriz conhecida e famosa?
IN Você sabe que eles são muito tímidos, não são muito expansivos. Eu até pensei no início que eles nem me conheciam mas percebi, já na segunda aula, que tinham ido investigar mais sobre mim. Um deles ficou muito emocionado porque não acreditou que eu era a atriz que tinha feito a “Doutora Júlia” dos Mutantes (novela da Record), que ele tinha assistido quando era menor e que, por isso, tinha ficado muito emocionado. Foi muito divertido, muito bom (risos).
ED Dar aulas é mais cansativo do que fazer teatro, cinema, televisão?
IN É diferente. Na verdade, o teatro é o que mais exige em termos de horário, porque o teatro é a arte mãe, é a base de tudo. Como as outras são passageiras (o cinema e a televisão), não precisam de métodos. É só você aprender a não olhar para a câmera e ninguém vai te ensinar mais nada. A televisão é muito pouco exigente. Eles preferem mais o tipo físico. Aí vai ficar o diretor te dizendo o tempo todo: ”menos, menos, menos”, ou “mais, mais, mais” e muitas vezes nem ele sabe direito o que quer. Já o cinema exige mais um pouco do que a televisão.
ED Como foi que surgiu a ideia de concorrer ao edital para professores de notório saber da UFBA?
IN Uma das professoras do “Espaço Nandi”, a Anamélia Rocha, é daqui de Salvador e dá aulas de Teoria do Teatro, pela Internet. Foi ela quem ficou sabendo do Edital e foi quem me inscreveu. Quando começaram a pedir a documentação foi que ela me falou e só então entrei na história. Ela me disse “Acho que vai dar certo e, por favor, não vai parar por aí”. Aí eu disse: “Meu Deus! ok, mas que é que eu preciso fazer”? Era pouca coisa, mandei os documentos para ela, sem nem imaginar que fosse ser selecionada, mas eu não podia voltar atrás. Agora, eu vou ter que resolver um pouco isso. Tenho compromissos esse ano como atriz (2024), como o lançamento de três filmes. Então, isso vai ter que me tirar um pouco daqui.
ED Mas você já precisou viajar a trabalho, não?
IN Sim, viajei duas para dar entrevistas, mas voltei rápido, sem interromper as aulas. Não, não gosto de interromper aulas. Por enquanto está dando para conciliar (…). E eu ainda tenho uma escola de Rio de Janeiro.
ED Você já tinha tido contato com a Bahia, conhecia pessoas daqui, a cidade?
IN Sim, através do Glauber Rocha (o famoso cineasta baiano) e do Márcio Meirelles (o conhecido diretor de teatro baiano). Eu fiz uma peça de teatro, fizemos aqui As Criadas, de Jean Genet, no Teatro Castro Alves. Como fiquei pouco tempo, não deu para saber mais sobre a cidade. Fiz três filmes em Salvador, (na Bahia), mas de longe, então não se conhecia muita coisa. Ainda não posso dizer como me sinto hoje, porque só estou aqui desde o início de março. É diferente. Aí você começa a circular, a ver, a entender o processo, a ir de um lado para o outro, a conhecer os lugares. Agora posso dizer que estou começando a entender o que é Salvador. Achando… assim… estranhando um pouco. Pensei que houvesse mais atividades culturais por aqui. Não somente na área de música e da dança. Por exemplo, para mim, é inacreditável que uma capital como Salvador não tenha um festival de cinema. Tem que fazer um festival de cinema caramba! Eu criei o Festival de Cinema de Curitiba, no Paraná, que está lá até hoje.

Abrindo as cortinas
ED Então vamos falar sobre Teatro. Tomando como referência o início de sua carreira, até hoje, quantas peças de teatro você já fez?
IN Trabalhei mais no Cinema. No Teatro eu devo ter feito até hoje umas 25 peças.
ED E durante esses 25 momentos nos palcos, cite três que você jamais poderia deixar de mencionar
IN A primeira foi a mais importante de todas que, na verdade, foi onde eu aprendi a ser atriz, que foi (fazendo) os Pequenos Burgueses de Máximo Gorki, no Teatro Oficina. A outra, se tornou a peça que a gente pode dizer que divide o teatro brasileiro em um antes e um depois, que foi O Rei da Vela, do Oswald de Andrade, também no Oficina. E outra peça que eu não posso deixar de falar é uma produção minha, quando eu consegui reunir de novo o Zé Celso (o diretor José Celso Martinez Corrêa) o Renato Borghi (ator) e o Fernando Peixoto (ator e futuro marido de Ítala), que criaram, junto comigo, o Teatro Oficina. Fizemos “A Dama de Ferro”, também do Gorki.
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Adiante, Ítala Nandi também destaca as aulas de interpretação do professor Eugênio Kusnet, no início da carreira, quando ela chega à cidade grande de São Paulo, no início dos anos 60, para ser atriz de teatro.
ED Sem dúvida, trabalhar com o Zé Celso é uma experiência que marca qualquer pessoa. Trabalhar com ele no tempo do Tropicalismo, com toda aquela efervescência cultural no Brasil, deve ter sido uma experiência absolutamente única.
IN O Tropicalismo surgiu lá dentro do Teatro Oficina.
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O Tropicalismo foi um movimento de intelectuais e artistas brasileiros de ruptura radical com a cultura conservadora nacional que, durante a ditadura dos anos 60, não temeram a morte na mão dos militares, embora muitos deles tenham sido torturados e mortos por esses militares ou estão desaparecidos até os dias de hoje.
ED Exatamente. A minha pergunta é: como foi trabalhar com Zé, mas também como foi trabalhar com outros diretores ou diretoras?
IN Trabalhar com o Zé Celso foi uma formação revolucionária para a minha vida. Graças a Deus eu aprendi, dentro da Oficina, a ser produtora, porque eu sou contadora formada (…). Eu tinha o quê? Eu tinha 22 anos quando fiz isso.
E, (outra experiência) claro, foi trabalhar com a Bibi Ferreira, quando ela me dirigiu em DNA Nossa comédia, de Tiago Santiago. Inclusive, foi quando descobrimos que nascemos no mesmo 4 de junho.

A hora da estrela que um dia foi contadora
ED Vamos pular para o Cinema. O que não pode ser esquecido nessa sua trajetória como atriz de cinema?
IN O filme feito com o Arnaldo Jabor o Pindorama, que fizemos aqui em Salvador. A gente fez ali na Ilha de Itaparica. Foi sensacional, incrível! com o Ruy Guerra, também a gente fez aqui na Bahia, Os Deuses e os Mortos. (…) Eu diria que com o Joaquim Pedro talvez tenha sido o grande encontro. O primeiro com o Joaquim foi A Guerra Conjugal. E o segundo foi O Homem do Pau Brasil. E nós faríamos o terceiro quando ele faleceu.
ED Me fale um pouquinho sobre o Prêmio José Martí, que você recebeu do governo de Cuba, como “Personalidade de Teatro”.
IN Mas eu só fui a Cuba por causa do cinema, dos festivais de cinema de Cuba O José Martí (famoso poeta revolucionário cubano) dava nome ao espaço onde se apresentavam os espetáculos, o teatro José Martí. E lá ainda tem a escola de cinema quem é considerada a melhor escola de cinema da América do Sul. E eu diria que é uma das melhores do mundo. O Festival de Cinema de Havana é um estrondo.

Quem assistiu TV te viu
ED E Televisão?
IN Eu fiz pouco televisão, mas também sempre coisas muito marcantes. Você vê, eu já estava com a carreira praticamente montada, quando fui fazer a primeira novela, que foi O Direito de Amar, com o Jayme Monjardim, esse também um hiper grande, super diretor. Depois também fiz com ele O Pantanal, que foi também outra grande novela, na Manchete. Porque a TV Globo não queria fazer essa novela, achava que era uma bobagem e terminou fazendo o remake. Não posso esquecer também da novela Que Rei Sou Eu, com a Tereza Rachel, dirigida pelo criativo Jorge Fernando.
ED O que você está achando do atual momento da política cultural brasileira?
IN Acho ótimo, está melhorando, pelo amor de Deus! O que vivemos durante os últimos quatro anos, o que foi aquilo? Fechou tudo. Lembro-me em Curitiba, o local onde fica o maior centro circense do mundo, 500 trabalhadores maravilhosos, eles tiveram que vender tudo. Redes, cordas, tudo. O circo fechou. Também não havia cinema. Então abriu novamente. Lembre-se de uma coisa: a cultura precede a educação. Cultura é o lugar onde você nasceu. A terra é sua. Aprender a escrever é mais tarde. Cultura é a sua origem. É a sua nação. A educação, escrita e leitura, é posterior. Cultura é a origem.

No vinho há verdades
ED Conte-me um pouco sobre In Vino Veritas, título do seu documentário sobre a colonização italiana no sul do Brasil, realizado por você em 1980.
IN Tenho dupla nacionalidade. A família do meu pai é toda de Veneza. Eles moram lá. A família do meu pai na Itália é muito maior que a família da minha mãe, que também é de origem italiana. Mas ela nasceu no Brasil. Meu pai nasceu na Itália e não se naturalizou. Essa origem italiana é muito forte (…). Meu avô foi prefeito de Caxias do Sul. Meu pai veio a convite do governo do presidente Getúlio Vargas para consolidar e criar o que Getúlio queria, uma boa viticultura e ele sabia que a região era muito boa para plantar uva, vinhas, ele estava certo sobre isso. Mas não havia técnicos que pudessem fazer o trabalho. Ele importou cinco italianos. Meu pai era um deles (…). Ele (o pai) criou o seu próprio vinho, (o Moscato Nandi), na Granja Piave. Eu morei nesta fazenda até os sete anos. Nasci em 1942, no meio da guerra. E um dos motivos do meu pai ter vindo para cá, foi para fugir de lá. Isso foi muito marcante na minha infância. Meu pai era contra os americanos. Meu pai era um nazista fascista. Ele era muito fascista. Então In Vino Veritas vem de tudo isso. Toda essa história. Todo esse caminho. O que eu queria? Queria gravar o que terminou sendo o primeiro longa-metragem dirigido no Brasil, no estado do Rio Grande do Sul. Eu queria registrar essa história. Queria gravar meu pai enquanto ele ainda estava vivo. E eu queria que ele contasse a história da cultura vitivina, do jeito que ele fez.

“É quando tu vestes/ que ficas nua”
ED Para terminar, o primeiro nu frontal do teatro brasileiro é atribuído a você, na montagem de Na Selva das Cidades de Bertolt Brecht, com direção de José Celso, outro momento histórico do teatro Oficina, e que mereceu até versos do poeta Joaquim Cardoso. Como foi ficar nua em cena?
IN Eu não sabia quem ia ser o primeiro nu. Não, vou te dizer. Eu não tinha ideia. O que eu tinha? Vinte e cinco anos? Bom, Durante os ensaios eu usava um quimono lindo, da Lina Bo Bardi e eu usava com calcinha e tudo. Mas eu achava que para ela (a personagem Maria Garga) declarar o seu amor… (ao personagem Shlink, interpretado pelo ator baiano Othon Bastos)… o amor tem sempre a ver com a nudez. Amor e nudez, para mim, sempre tem uma conexão (…). Aí quando teve o dia da censura, estavam lá os censores e, eu perguntei; “Zé, o que eu faço? Tiro a calcinha ou não?” Ele olhou para mim e disse: “Faz o que você sentir na hora”. Botou a banana na minha mão, como se diz. Aí… antes de entrar para fazer a cena, eu tirei a calcinha e deixei no lado do palco.
ED A censura não tinha preocupações com o nudismo?
IN O “negócio” da censura (na “Selva…”) era o “palavreado”. Era no auge da censura. E a peça durava seis horas, cara!. Era enorme! Quando “tu viu”, a gente tinha cortado duas. Você viu com quatro horas (eu tinha contado a Ítala que assisti a peça na sua versão de quatro horas e não na versão original, que durava seis.. Mas eles (os censores) viram com seis e responderam quando perguntamos sobre a cena da nudez que “não tem problema nenhum”. Quando foram embora o Jabor (o cineasta Arnaldo Jabor) falou para o Zé Celso “Zé, eles dormiram a peça inteira! Eles dormiram! Eles não viram! Eles não viram!”.