
Com mais de 68 anos dedicados à capoeira, Norival Moreira de Oliveira, o mestre Nô, é professor da Faculdade de Educação da UFBA desde abril de 2024, quando assumiu a condição de Professor Visitante Notório Saber do Departamento III da Faculdade de Educação (Faced/UFBA). Ele faz parte de um grupo de outros cinco professores que receberam a mesma titulação após seleção do edital do Programa de Saberes Tradicionais da Pró-Reitoria de Extensão da UFBA (Proext/UFBA). O programa busca fortalecer projetos de Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS), a curricularização da extensão e as relações da UFBA com comunidades, territórios e demais setores da sociedade. O Edgardigital (doravante ED) conversou com os docentes aprovados no primeiro edital Notório Saber para a série “Notório Saber UFBA”. As fotos que ilustram esta entrevista fazem parte do arquivo pessoal de Norival Moreira de Oliveira Filho (o mestre Nozinho Filho).
O mestre Nô (doravante MN aqui nesta conversa) também nos dá uma lição de vida, como sempre costuma fazer, seja na sala de aula, seja na roda de capoeira, que para ele devem ser iguaizinhas à roda da nossa própria existência. Opção por uma educação dedicada que começou nas palafitas do antigo bairro da Massaranduba, onde “crianças disputavam carne podre com os urubus” e que o afastou da formação universitária. Mas hoje, como acredita que a capoeira lhe tirou o “diploma de doutor”, fez da reconquista desse espaço uma meta, e retorna à vida acadêmica com o diploma de mestre e professor por notório saber. São as voltas que a vida dá. Católico, crente também no que é do universo dos Orixás, se confessa um mandingueiro convicto, parta quem a salvação de uma vida pode estar contida em uma simples frash, e, “se ajoelhou, tem que rezar”.

ED A minha primeira pergunta é: onde o senhor nasceu e como foi a sua infância?
MN Eu vou tentar resumir ao máximo. Eu nasci em 22 de junho de 1945, na ilha de Itaparica, no município de Vera Cruz, em um pequeno arraialzinho chamado Coroa. Morei lá um bom tempo com os meus avôs maternos, até aproximadamente os meus 5 ou 6 anos de idade e, foi lá, com esse meu avô, que comecei a aprender vagamente as artes da capoeira. O nome dele era Olegário Veridiano Moreira, mas ele não era um mestre da capoeira, ele era pescador, a vida lá era de pescaria. A mulher dela, minha avó, se chamava Joana Albertina Moreira. Já o meu pai era funcionário público federal, trabalhava no DNPVN -Departamento Portos e Vias Navegáveis, na capital. O nome dele era Bolívar Lopes de Oliveira e o da minha mãe era Dejanira Moreira de Oliveira. Aos 7 anos, eu vim para Salvador estudar.
ED E quando começou o aprendizado “de verdade” da capoeira?
Desde os 4 anos de idade, mas era um tipo de uma brincadeirinha, com o meu avô, lá na ilha, coisa de criança mesmo, como falei. O meu avô não era mestre, mas ele ficava assistindo as rodas de capoeira em Salvador, quando ele vinha vender o peixe que pescava na ilha. Aos 7 anos, quando eu me mudei para entrar no ginásio, é que fui morar com um mestre, Nilton de Moraes Paz, no bairro da Massaranduba. Ele não tinha uma academia. Treinava em um pequeno espaçozinho ao lado da casa dele. Era ali que nos treinávamos. Mestre Nilton era discípulo do mestre Pirrô e do mestre Zeca. Eram 3 amigos. Pirrô e Zeca também moravam na Cidade Baixa, no bairro do Uruguai. Foi com esses homens que eu comecei a aprender, de verdade, a Capoeira Angola.
Edgardigital
Diferentemente da Capoeira Regional e da Capoeira Contemporânea, a Capoeira Angola é mais tradicional, busca o resgate da ancestralidade africana, com golpes mais próximos ao solo e ritmo mais lento.

“Novo, muito novo”
MN Aos 18 anos, eu fui servir ao exército, no Quartel da Mouraria. Era no ano de 1964, quando começou o que eles chamavam de revolução (se refere aqui ao golpe de março de 1964). E foi quando o meu mestre Newton me entregou o meu diploma de mestre capoeirista. Ele falava que só ia me formar se eu servisse no Exército. Ele tinha essa coisa, não sei, uma ideia lá dele. Então me formei em 18 de setembro de 1964 e só aí ele entregou meu diploma. Mas eu já estava preparado, “quase” preparado, para enfrentar a vida como um mestre de capoeira, novo, muito novo.
Com 19 anos eu abri a minha primeira academia, lá no bairro da Massaranduba, onde morava. Lá tinha uma área chamada Baixa do Petróleo. Eu me juntei a três cidadãos que eram veteranos no bairro e juntos construímos uma pequena sede comunitária. O bairro estava precisando de muita coisa. As casas palafitas em cima da água (geralmente muito sujas), ligadas por pontes (geralmente muito frágeis e perigosas), que eram por onde nós passávamos. Conseguimos caçambas de lixo para entulhar a lama. Depois conseguimos algumas caçambas de entulho das construções, que espalhávamos por cima do lixo, no qual as crianças disputavam carne podre com os urubus. Muito complicado, muito complicado mesmo, mas eu consegui formar uma liderança entre os jovens de lá e entre os adultos também. E com a ajuda desses três “cidadãos” eu comecei a ensinar assim, a uns cinco, seis alunos. Outro dia o filho de Tutu, chamado Antônio, o “Toinho”, que foi um dos meus primeiros alunos, me deu o prazer de me ligar. Foi uma grande surpresa.
ED E quem eram esses “cidadãos”?
MN Só lembro pelo apelido. Um tinha o apelido de Tutu que ficou comigo por longas datas. Ah! O nome dele era Tolentino Nicolau de Santos, lutador de artes marciais greco-romanas, que foi quem me ensinou a tocar pandeiro. O outro era Vavá e o terceiro era conhecido por Carrinho, um carro pequeno. Hoje moro no Largo dos Paranhos e lá se vai muito tempo, muitos anos se passaram. Mas foi assim que tudo começou. A minha primeira turma de formados, em 1970, era de cinco alunos. Alabama, Amendoim, Loremil, Grande e Nelson. Os grandes cinco. O Alabama tem hoje uma academia famosa aqui em Salvador, Academia do Mestre Alabama, nos Barris. O Loremil foi para os Estados Unidos com o grupo folclórico “Viva Bahia”, ele e o Amendoim. O Loremil ficou em Nova York, o Amendoim voltou (…) e hoje mora na Espanha. O Loremil morreu, Grande se aposentou como soldado de polícia e o Nelson é taxista, roda de táxi.

Um notório saber a mais
ED Como ocorreu a ideia de concorrer no edital para Professor Notório Saber da UFBA?
MN Olha, era a minha meta. A universidade sempre foi a minha meta. Sempre foi a minha meta atingir o mais alto pódio, já que eu não tive a oportunidade de ingressar na universidade, na adolescência. Eu estudei no Colégio João Florêncio Gomes. Estudei dois anos, mas a capoeira foi mais forte. Ela conseguiu “me tirar” para eu me dedicar a ela. Agora, ela me me trouxe de volta. Eu já fiz várias palestras para os alunos do curso de Educação Física, aqui na UFBA.
Edgardigital
Esse não é o primeiro título de professor por notório saber que o Mestre Nô recebe. A professora Maria Cecília Silva, diretora da Faculdade de Educação da UFBA, ainda destaca, entre outras titulações atribuídas ao Mestre Nô, a de fundador da Associação Brasileira Cultural Capoeira Angola Palmares, entidade para a prática e ensino da capoeira no Brasil e no exterior; além de professor colaborador do Grupo de Pesquisa HCEL/FACED/UFBA, desde 2015, e de já ter recebido os títulos de Notório Saber em Educação, pelo Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (2016) e pelo Núcleo de Estudos Afro brasileiros da Universidade Federal de Alagoas (2016). Agora, veio o reconhecimento do título pela UFBA.
ED Tem uma “receita” para se construir um notório saber?
MN O processo é feito através da indicação de uma pessoa qualificada, de outra que já tenha prestado serviços relevantes, e tudo isso, para mim, é certo. Mas para mim, particularmente, é eu ter as condições de “chegar lá”, independente de alguém indicar o meu nome ou não indicar. De “eu chegar”, não por ego ou para “ficar na universidade”. Não, isso para mim “não rola”, não funciona. Mas sim para conquistar um sonho que eu não pude, não tive condições de realizar. Porque a capoeira me tirou de estudar, não fiz vestibular, nem ingressei na universidade. A capoeira “me tirou”. Então a capoeira tinha que me trazer de volta. Tinha que me trazer de volta até aqui.
ED E então como está sendo essa experiência nova, agora, aqui na UFBA?
MN Está sendo uma experiência boa porque eu estou fazendo realmente o que eu sempre pretendia, o que estava programado na minha cabeça, na minha mente, para fazer. É justamente isso. É ensinar a capoeira de uma forma “um tanto” diferente do que acontece lá fora, e do que muitas pessoas têm na imaginação. Eu pensei e criei essa “Capoeira na roda, capoeira na vida” e então abracei essa causa. E trabalho em cima disso.
ED Mas qual é a forma “um tanto diferente” que o mestre Nô propõe?
MN A diferença está mais nas pessoas que talvez não entendam o sentido daquilo que elas se propõem a fazer. Fazer por fazer, muitas vezes sem saber dizer não ou dizer sim. Tudo que nós fazemos tem que ter um sentido e nós temos que descobrir qual é esse sentido. A vida é para viver de uma forma confortável, sem precisar temer. Então, o que eu faço na roda, eu levo para a vida.
ED São 30 alunos matriculados, duas aulas por semana, com duração de duas horas e meia cada aula. Como são essas aulas?

MN Bem, eu divido em três partes. A primeira parte é teórica e envolve fundamentos, comportamentos, instrumentos e música. Uma hora. Depois uma hora de movimentos. E depois meia hora de conclusão. Além da conclusão, faço um encerramento da aula. Pergunto o que pensam, o que querem, o que compreenderam, o que não compreenderam, o que é necessário e o que não é necessário. Faço a recapitulação de toda a aula (…) É um curso de extensão. Gostaria que fosse obrigatório. Pelo menos teria a presença de todos. E eu iria ainda mais fundo (…) Eu uso tudo, o berimbau, o pandeiro. Tem um armário aqui na sala, mas está cheio. Só deixei dois berimbaus. Trago a bolsa, o capacete, o pandeiro. É assim que é, faz parte. (…) Eu ainda ensino na minha casa. Eu ensino para instrutores, eles treinam comigo. Tenho um grupo em Castelo Branco, onde trabalho como assistente social. Trabalho com crianças e adolescentes.
ED Os alunos da UFBA gostam?
MN Sim, tem até um dos alunos que é professor aqui. Tem outro, um cidadão idoso. Ele está aposentado. Ele era professor de quê? De Filosofia. Então é para todos, para todas as idades. Se você quiser se inscrever, tudo bem. Se você sabe, se não sabe, não tem problema.

A grande viagem
ED Por onde você já passou divulgando a capoeira?
MN Essa é uma boa pergunta.
ED Então me dê uma boa resposta.
MN Eu vou responder. É um pouco difícil, mas vou responder. Primeiro, meu objetivo principal era os Estados Unidos, para onde viajei em 1990, representando o Brasil no National Arts Blank Festival, em Atlanta. É uma cidade negra que abraçou esse evento que acontece lá a cada dois anos. Em 1966, Mestre Pastinha participou deste evento. Ele é como um mito para nós. Eu ia viajar com ele e a equipe dele. Íamos também para Angola, Dakar e Moçambique. Mas eu tinha acabado de deixar o exército. Eu não consegui. Em 1990, fui convidado a participar desse mesmo festival. Viajei para Atlanta. Passei uma semana lá, fazendo apresentações. Depois fui para Nova York. Fiquei em Nova York três meses. Tempos depois voltei e fiquei lá por mais um ano. Fiquei entre Nova Jersey e Nova York. De Nova York, viajei para a Rússia e depois viajei para Israel. Eu fui para a Jordânia. Fui a toda a Faixa de Gaza. E fui para o Canadá, Vancouver, Toronto, Quebec, Montreal. Eu fui para o México também. Tijuana e Acapulco. Fui para quase todos os Estados Unidos. Fui para Santa Rosa e Santa Fé. Fui para São Francisco. Aqui no Brasil existem muitas cidades que conheço. Estou sempre falando sobre trabalho. Em todos os lugares onde estive foi trabalhando e divulgando a capoeira.

Mitos
ED Você já falou do mestre Pastinha, um mito. Quem mais colocaria nesta lista?
MN Quem mais além dele? Bem, aí está o Bimba. Mestre Bimba também é mito. Mas antes de tudo, conheci muito ele. Eu não apenas o conheci, mas morei com ele. Agora, o maior mito para mim foi o meu mestre.
ED Então Mestre, quem foi teu mestre?
Foram três: mestre Newton, mestre Pirrô e mestre Zeca. Quando digo três é porque estavam sempre juntos. Eles também vieram de Vera Cruz. Eles foram muito importantes na minha vida. Eles organizavam as aulas para mim.
ED Você já sofreu alguma discriminação por ser capoeirista?
MN Só quando eu era menino. As pessoas diziam que eu era “capoeira”. Eu não tinha permissão para usar boné. Meu pai disse que eu deveria estudar Engenharia.(…) Eu nunca me importei com isso. Na verdade, nunca dei direito à discriminação. Eu nunca deixei essa coisa entrar na minha cabeça.

ED Então vamos falar da sua vida “fora” da capoeira O senhor é casado? Tem filhos?
MN Quase 44 anos fui casado. Casei-me com uma prima Sônia. Sonia Borges de Oliveira. Mãe de Norival Moreira de Oliveira Filho, Sana Borges de Oliveira, Gina Borges de Oliveira e Jeane Borges de Oliveira. E um filho adotivo. Ele era um menino de rua. Valdir. Depois que descobri que o nome dele era Valdir Alves Gomes tirei ele da rua, onde vendia amendoim com 11 anos de idade. Vendia amendoim no Mercado Modelo. Eu queria ensiná-lo. Hoje ele mora em Londres há mais de 30 anos. Agora ele trabalha na American Airlines. Ele é negro. Ele ensinava capoeira e pratica Jiu-Jitsu. Ele está indo bem.
Mas, em 2008, eu perco a companheira. Aí “eu fui para baixo”. O meu barraco desabou, né? Aí eu vou me retirar. Aí fui embora para a ilha, sozinho. Fiquei lá na casinha, na casa do meu senhor lá. Em 2012, eu conheci uma mulher lá em casa, chegou lá na minha casa, queria aprender capoeira, era da Alemanha. Ela não conhecia nada. Ela falava só um portunhol, bem esquisito mesmo. Mas começou a treinar comigo e tal. Levou um mês treinando e depois descobri que ela estava gostando de mim. Eu não queria mais ninguém na minha vida. Uma que eu tive, fiquei 44 anos. Foi o bastante para mim. Mas cedi e casamos. Casamos e hoje temos uma filha o nome dessa menina de 10 anos é Moana Dietrich de Oliveira. Então nós vamos fazer 10 anos de casados. Graças a Deus, vamos indo bem, bem mesmo. Infelizmente não está melhor porque ela não encontra trabalho aqui. O nível dela é universitário. Só que não aceitaram a transferência dela para cá. Ela é da área de Farmácia.
ED Qual é o nome dela?
MN Anikka Dietrich de Oliveira.
ED O senhor é religioso?
MN Eu sou católico de família, porque eu fui batizado na igreja católica. Eu também tenho os meus protetores no candomblé. Eu aprendi a tocar (tambores) em um terreiro de candomblé, na Massaranduba. Eu fui ogan, inclusive, desse terreiro. Mas também sou da natureza. Eu amo a natureza. Para mim, as obras de Deus estão em primeira instância. Primeiro as obras de Deus. E eu sou mandingueiro, sou muito mandingueiro, muito mandingueiro, sim.
ED E o que é ser “muito mandingueiro, sim”?
MN Ah! O mandingueiro… Então, mandinga no candomblé é o feitiço. É o preparo para o ebô. Mas na capoeira não, na capoeira é a malícia mais a malandragem. Malícia é o ato do senhor perceber rápido, muito rápido o que vem ao seu encontro. Daí, como vai descartar a vida? É um flash! Porque a vida vai estar em jogo e, se ajoelhou, tem que rezar. Aí tem que ter malandragem. Eu já me saí. Eu já “me saí de boa”, muitas vezes!