Um reforço para o conhecimento acadêmico e para a educação antirracista compõem a oportunidade de intercâmbio que cinco estudantes e egressos da UFBA conquistaram, ao serem selecionados para Programa Caminhos Amefricanos – Edição Moçambique, que foi ofertado pela primeira vez, pelo Ministério da Educação (MEC), através da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Durante o mês de setembro de 2024, os discentes e recém-formados Arthur Santos Lemos Santos (Letras), Jucimara de Jesus Santos dos Santos (recém-graduada em Química); Rodrigo Ferreira Santos (Artes – Desenho e Plástica), Romário Silva de Oliveira Costa (Artes – Desenho e Plástica) e Verônica Rodrigues Ferreira da Silva (Ciências Sociais) viveram um período de estudos na Universidade Pedagógica de Maputo (UP), na capital de Moçambique, na África Oriental.
A importância desse intercâmbio inédito reside na oportunidade que os estudantes terão para entender como a ciência é ensinada em Moçambique, ante a um panorama exclusivamente negro e afrocentrado, pois o Programa Caminhos Amefricanos faz parte do retorno das políticas de investimento público para a população negra na área de combate ao racismo e promoção da igualdade racial no Brasil e visa uma educação que supere os preconceitos raciais, para que nossas e nossos estudantes construam uma identidade étnico-racial positiva.
Ao todo, foram selecionados 50 estudantes negros das licenciaturas de diversas universidades do país. Um dos requisitos para a propositura dos candidatos era que, entre as ações do candidato, estivessem relacionadas o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e/ou extensão voltadas à Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, conforme previsto pela Lei 10.639/2003.
“É uma oportunidade de representatividade para esses estudantes”, considerou a professora do Instituto de Química, Paloma Santos, que acompanhou a trajetória de uma das selecionadas. “Estou muito feliz e com um sentimento que mistura orgulho e também o entendimento político da caminhada de estudantes negros na UFBA. A professora que orienta a discente Jucimara dos Santos afirma: “as oportunidades de participar de um intercâmbio fora do país, sendo uma estudante negra, são mínimas, e a participação neste edital é fruto de um investimento pessoal, mas também por causa do retorno das políticas de investimento público para a população negra”.
A docente também acrescentou que, “para a UFBA é uma constatação da qualidade de nossa formação e da qualidade de nossos estudantes, principalmente, considerando que somos uma universidade do maior estado negro do Brasil, e nesse edital inédito, nossos estudantes realizarão um intercâmbio sendo pesquisadores com temáticas relacionadas ao ensino e às questões raciais”.
O Programa Caminhos Amefricanos
O Programa é realizado por uma parceria entre a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC), a Capes e o Ministério da Igualdade Racial (MIR). A seleção faz parte do Edital Conjunto nº 34/2023.
As atividades contaram com um curso de formação online, obrigatório, com duração de 40 horas sobre História e Cultura Afro-brasileira e Moçambicana, dividido em três módulos: Educação Escolar Quilombola – EEQ; Brasil; e Moçambique. Cada módulo teve uma atividade avaliativa que culminou com a ida a Maputo.
A iniciativa foi lançada em agosto de 2023 com o objetivo de promover intercâmbios para o fortalecimento de uma educação antirracista, a partir da troca de experiências, conhecimentos e políticas públicas em países do Sul Global para docentes e discentes de licenciatura. Além disso, busca-se incentivar a socialização de conhecimentos, de experiências e de políticas públicas que contribuam para a promoção da igualdade racial e para o enfrentamento do racismo no Brasil.
A seleção contou com 980 inscritos e foi direcionada para estudantes quilombolas ou autodeclarados pretos ou pardos, estudantes de licenciaturas a partir do 5º semestre e vinculados a Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (Neabs), Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabis) ou grupos correlatos. O intercâmbio é de curta duração e serão 15 dias de imersão em Moçambique, na Universidade Pedagógica de Maputo – UPM. A viagem aconteceu entre os dias 16 a 30 de setembro de 2024.
Selecionados da UFBA para o Programa Caminhos Amefricanos
Dentre os cinco estudantes da UFBA selecionados para o intercâmbio Caminhos Amefricanos da Capes, a reportagem do EdgarDigital conseguiu entrevistar quatro: Arthur Santos Lemos Santos (Letras), Jucimara de Jesus Santos dos Santos (recém-graduada em Química); Romário Silva de Oliveira Costa (Artes – Desenho e Plástica) e Verônica Rodrigues Ferreira da Silva (Ciências Sociais). Conheça um pouco mais sobre a caminhada individual que levou a aprovação e a emoção deles (dispostos em ordem alfabética) ao serem selecionado para este programa inédito:
– Arthur Santos Lemos Santos: licenciado em Letras pela UFBA
Para ele, é um misto de sentimentos entre “imensa satisfação e realização, pois ser uns dos 50 dentro de mais de 900 inscrições é entender como eu posso, como sou capaz. Quase nunca, pessoas negras, pensam nas possibilidades de chegar a algum lugar. Por vezes, me pus em cheque quanto à minha escrita acadêmica por achar que não sabia escrever. Daí abre um edital, eu escrevo e sou aprovado. Isso me dá autoconfiança do possível”.
Como integrante bolsista do grupo de pesquisa – PET Comunidades Populares e Urbanas, desde 2020, ele entende que o programa Caminhos Amefricanos “é a necessidade de efetivar políticas públicas de reparação educacional para com os jovens negros e quilombolas. Faremos presença nos espaços acadêmicos do sul global, aqui pensado como categoria política”.
“Podermos fazer um intercâmbio com tudo custeado pelo MIR (Ministério da Igualdade Racial) é a representação de um novo Brasil, sendo observado agora o contexto de jovens negros periféricos e quilombolas que pouco teve oportunidades, tudo isso causado pela colonialidade. Esse novo país que estamos sendo presentes está além das fronteiras nacionais. Essa é a cara do Brasil, latimo Amefricano como bem caracteriza a escritora Lélia Gonzales”, destacou.
Ele atribui o sucesso aos docentes que o ensinaram e orientam: “tenho muita sorte de ser cercado pelos melhores professores. O que seria de mim sem minhas orientações? Como já dito, sou parte do PET, tutorado pela professora Fátima Aparecida, que orienta cada pesquisa do grupo multidisciplinar. Ela orientou minha pesquisa, que levarei a Moçambique. Além dela, cito também o professor Arivaldo Sacramento, que me fez pensar, primeiramente, em como língua e pessoas negras representadas na história têm uma situação complexa”.
Como contribuição científica, Arthur acredita que poderá compartilhar experiências com a língua portuguesa. “É um outro português que se pensa e faz pensar”. Já atuando como professor no Instituto Cultural Steve Biko e como estagiário, na rede municipal de ensino de Salvador, ele está indo para se “renovar nas contribuições das línguas ‘bantu’ no português brasileiro, ou podemos pensar no português afrodispórico? e/ou mesmo ‘pretuguês’? Esse é o avanço na minha área, entender e dizer que o ‘erro’ das pessoas negras, na verdade, tem linhas outras de construção, que não simplesmente da língua latina”, concluiu.
– Jucimara de Jesus Santos dos Santos: recém-graduada do curso de licenciatura em Química
“Estou muito feliz e certa da importância do intercâmbio para a formação política e do impacto não só para a minha vida, mas também na vida dos meus familiares e de outras meninas/mulheres negras, como eu. Esta oportunidade reforça o meu compromisso ético e político com um ensino antirracista de Química e Ciências. Além disso, me sinto agradecida também por ter caminhado, dentro e fora da Academia, ao lado de outras mulheres negras e segura de que sozinha eu não conseguiria”, declarou.
Ela – que identifica-se como “uma mulher negra jovem, nascida na cidade de Salvador (BA), professora em formação e pesquisadora universitária” – lembra que “já tinha visto outros estudantes fazendo intercâmbio e havia pensando que adoraria ter tal experiência, ao mesmo tempo que entendia que era algo bem distante da realidade de pessoas como eu e da minha família”. Ela, que nunca havia viajado de avião, estreou já com uma viagem internacional.
“No dia que busquei o passaporte, ao chegar em casa e mostrar para minha mãe, também uma mulher negra, ela ficou emocionada e disse o seguinte: ‘nunca imaginei que um dia uma de nós teria um passaporte’”, Jucimara contou acrescentando que, “sendo a 19ª neta de sua avó, Joana Bernardes de Jesus, ela é a primeira da família a ocupar um lugar na universidade e também ser uma perspectiva a espelhar, através da educação, muitas possibilidades futuras para os mais novos.
“O programa Caminhos Amefricanos significa para mim o reconhecimento de uma trajetória na graduação que, apesar dos nãos, da escassez, da dificuldade de ter que trabalhar ao mesmo tempo em que estudo, como muitos estudantes negros e negras desse país, caminhei devagar, mas nas minhas andanças fui consciente e comprometida com a minha formação, com as minhas iguais e com a minha ancestralidade”.
Ela teve conhecimento sobre o Programa Caminhos Amefricanos através de uma amiga, também estudante negra da Química na UFBA, Joyce Marques Melo dos Santos, “que me enviou o documento e me incentivou a fazer a inscrição, reconhecendo a minha caminhada de trabalho com as questões raciais e reforçando o meu potencial para aprovação”. Após ler o edital do Programa Caminhos Amefricanos, Jucimara encaminhei para suas orientadoras: Paloma Nascimento dos Santos, professora da UFBA, e Patrícia Fernanda de Oliveira Cabral, professora da UNESP, que também foram supervisoras do intercâmbio.
Dos 50 selecionados, Jucimara foi a única estudante de Química no intercâmbio. Em sua visão, a ação oportuniza entender “como o Ensino de Ciências/Química é trabalhado e pesquisado em Moçambique, tendo sempre as questões raciais como cerne da pesquisa. A partir desse panorama, terei um entendimento maior sobre uma ciência afrocentrada, que já faz parte da minha linha de pesquisa, mas agora com um diferencial de vivências e trocas de experiências com pesquisadores e pesquisadoras do continente africano”, afirmou. Em seu plano de trabalho e de pesquisa, ela busca pensar uma ciência negra brasileira e baiana articulada à ciência africana..
– Romário Silva de Oliveira Costa: concluinte do curso de Artes (Desenho e Plástica)
“Oportunidade de fomentar a pesquisa para a juventude negra, num projeto que concilia tanto as prerrogativas do Ministério da Igualdade Racial e do Ministério da Educação” é um dos pontos de destaque do programa apresentado por Romário Costa. Ele, cujas pesquisas giram em torno questão da educação quilombola e da educação para as relações étnico-raciais, atribui a experiência como enriquecedora na esfera pessoal e profissional: “uma oportunidade de estreitar esses laços que percorrem essa conexão entre Brasil e África”.
Para ele, a inscrição para esse intercâmbio foi o auge que juntou todas as suas experiências do fluxo de sua formação, pois passou pelo PIBID, pelo programa Residência Pedagógica – ganhando, no ano passado, o prêmio Paulo Freire de Educação, através do Encontro Nacional das Licenciaturas. Ele entende que é “representativo do ponto de vista de ser oriundo de comunidades periféricas de Salvador e ter esse espaço de uma educação que, por muitas vezes, é negado a gente sabe a dificuldade que é também de se formar, concluir processos, estar produzindo ativamente. Assim, a gente consegue apresentar novas estatísticas do que, comumente, vem sendo negado pra gente. Então é representativo nesse quesito de possibilitar que consiga alcançar e acessar espaços historicamente negados e por esse legado familiar e caminho que a educação nos fornece como possibilidade de edificar e construir futuros próximo países”.
Como integrante do campo das artes visuais, ele destacou a importância do Programa, apontando que “embora seja um campo que ainda sofre uma grande negligência nos espaços escolares e até no contexto social, essa experiência abarcada pelos Caminhos Amefricanos mostra que a gente tem, sim, um legado com uma base de conhecimento científico que pode ser desenvolvida e é fundamental para os processos educativos que vão levar em consideração uma educação sensível, com atenção e lugar para as nossas emoções no processo de formação humana, trazendo conceitos como ludicidade, criatividade, e imaginação para pensar a sociedade e suas dinâmicas”.
Às vésperas da viagem, ele que “ confessa que as “expectativas estão a mil porque vai ser a primeira vez no território africano”, explicando que “a gente romantiza e cria muitas teorias e muitas ideias sobre o que é esse legado africano, então, eu acho que vai ser uma experiência para quebrar um pouco dessa narrativa romântica e trazer a veracidade da realidade, mesmo”. Romário, que “não quer ficar especulando sobre o que encontrar”, acredita que será uma experiência muito positiva porque irá conhecer uma gama de aspectos da cultura local, aspectos geográficos e o panorama geral.
– Verônica Rodrigues Ferreira da Silva: estudante do curso de Ciências Sociais
A estudante revela seu “sentimento de realização, com aquela satisfação que se tem após um longo processo de comprometimento, que reverbera em vários outros sentimentos, como alegria e gratidão, fiquei extremamente grata e feliz pelo meu processo, desde quando coloquei o sonho de intercâmbio, ainda no ensino médio, como meta”.
Ela relembra o caminho que trilhou até a realização do sonho do intercâmbio e espera que não “seja o primeiro de muitos. Foram incontáveis dias acordando cedo e dormindo tarde, enfrentando o transporte público de Salvador. Muito investimento em dinheiro e tempo pela minha família, para me manter na escola e na faculdade, estamos todos lá em casa com esse sentimento de gratidão”. Além disso, ela contou que quase ficou de fora no envio da inscrição diante de uma confusão com algumas notas em seu Histórico Escolar, mas o MEC prorrogou o prazo.
Em termos de representatividade, ela acredita que é “muito importante, para as minorias sociais se verem e se projetarem em espaços que não foram pensados para elas. Foi importante o fato de minha mãe, Vera Lúcia, uma mulher negra, ter entrado na UFBA (ela se formou em Letras e hoje é professora municipal), para eu entender que a Universidade também é nosso lugar. Mas é crucial que as políticas públicas e projetos como o Programa Caminhos Amefricanos amparem a ideia de representatividade, pois são necessários projetos que pensem de forma estratégica para dar oportunidades aos corpos negros, indígenas, trans, PCDs, pobres e tantos outros não privilegiados, alcançarão lugares que o sistema burguês insiste em expulsá-los”.
Integrante do grupo de pesquisa – Núcleo de Estudos de Ciências Sociais em Moda, teve ajuda da orientadora Mi Medrado, que tem pesquisa de campo na África (Luanda-Angola). “Ela quem corrigiu minha carta de intenções para enviar na inscrição para o Programa. Sou extremamente grata a ela, fui contemplada com nota 100 para o intercâmbio, dessa forma, tirei a nota total na carta de intenções, ficamos as duas muito felizes”.
“Como curso Licenciatura em Ciências Sociais e meu primeiro artigo publicado foi ‘Ser negro na escola: organização política do negro neste espaço ao longo da história e na atualidade’, o Programa é uma oportunidade de continuidade dessa temática, explorando estratégias e conhecimentos de educadores em Moçambique e o que a história desse país tem a fortalecer, enquanto referência africana, em uma luta afro-brasileira na educação”.
Ela acrescenta sobre a forte relevância do intercâmbio para o projeto que faz para a comunidade em que vive – o bairro em que cresceu em Salvador, apelidado pelos moradores de “Coruja”, localizado na Cidade Nova: o “Cine Coruja”, projeto que promove sessões de cinema infanto-juvenis e demais atividades recreativas, realizadas por colabores da comunidade. “O projeto é uma devolutiva à educação que me deram. Sou responsável pela curadoria dos filmes e nosso foco é usar o cinema como ferramenta de valorização do conhecimento ancestral”, orgulha-se.
Com o intercâmbio, Verônica espera “contribuir para produção científica da UFBA, desta vez com uma experiência mais rica para os estudos antirracistas na educação, e que eu seja uma contribuição latente para área de licenciatura, servindo de incentivo a mais programas como este”, finalizou.