Os resultados de um grande estudo de coorte sobre a incidência de lesão hepática induzida por drogas na América Latina chamam atenção para o aumento dos casos provocados por suplementos alimentares e à base de ervas, e a alta taxa de morbidade associada ao seu uso. O estudo está embasado na experiência de 10 anos da rede de referência para a América Latina de casos de lesão hepática induzidas por drogas (Latindili), iniciativa viabilizada através de um consórcio com a participação da UFBA e das Universidades de Rosário/Argentina, Montevidéu/Uruguai, e Málaga/Espanha.
A lesão hepática é produzida a partir de uma inflamação no fígado causada por medicamentos fitoterápicos ou alopáticos, ervas e suplementos. Pode ser aguda ou crônica, e avaliada como leve, moderada , grave ou gravíssima. A UFBA participa da rede que é responsável pela construção de um importante banco de dados sobre casos de lesão hepática induzidas por drogas na região e tem o Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) como um dos centros de pesquisa, onde foi criado o primeiro ambulatório do país específico para casos toxicidade hepática.
O professor da Faculdade de Medicina e médico hepatologista Raymundo Paraná, que coordenada o estudo na UFBA, é um dos autores do artigo publicado na revista científica Clinical Gastroenterology and Hepatology, que apresenta os resultados clínicos do estudo acerca das drogas responsáveis por lesão hepática em 468 pacientes inclusos na rede Latindili em um período de 10 anos. Também assinam o artigo Maria Isabel Schinoni, médica hepatologista e professora do Instituto de Ciências da Saúde (ICS), e Vinícius Nunes, médico hepatologista do Hupes. Os autores destacam a importância desse registro prospectivo como uma ferramenta de saúde pública.
Raymundo Paraná afirma que os casos de hepatoxicidade hepática cresceram muito nos últimos anos, não só na América Latina, mas em todo o mundo. Ele atribui isso, em grande parte, ao uso de substâncias prescritas nas redes sociais e ao hábito de automedicação da população.
“É uma situação muito grave essa comercialização de remédios e medicamentos fitoterápicos nas redes sociais, sem a mínima comprovação científica de seus efeitos e segurança. A partir de modismos e conceitos falsos, são prescritas substâncias que nunca foram testadas”, alerta.
De acordo com o professor, essa prescrição através das redes sociais é feita inclusive por profissionais de saúde, que induzem as pessoas a pagarem por uma fórmula que pode fazer adoecê-las. Assim defende que é fundamental fortalecer as ações de fiscalização e o combate às fake news nas redes sociais.
Muitos casos de toxicidade hepática por drogas e ervas estão registrados em bancos de dados de referência para os Estados Unidos e a Europa. Paraná ressalta a importância da construção do banco de dados para catalogar essas substâncias tóxicas com ocorrência na América Latina, pois a região tem características particulares, com uso de algumas substâncias e ervas específicas com potencial para causar casos de graves, entre as quais cita o chá de sete ervas, moringa, chá verde e spirulina. Por isso a região é considerada uma área de grande interesse para o estudo da respostas às diferentes drogas e suas manifestações clínicas.
O Hospital Universitário Professor Edgard Santos atua como um dos centros de pesquisa, com a participação de farmacêuticos e médicos hepatologistas. “Relatamos os casos atendidos ao consórcio para registro no banco de dados, que está disponível para acesso dos médicos, contribuindo para democratizar o conhecimento e para o diagnóstico dos casos e o tratamento dos pacientes”, explica o coordenador do estudo.
O professor chama a atenção também para a ação de alguns medicamentos licenciados no Brasil com potencial para causar muitos danos hepáticos, como é o caso da nimesulida, que já é proibido em muitos países do mundo. Uma publicação sobre este medicamento foi gerada no consorcio LATINDILI. “Dar visibilidade a esses casos é muito importante para as ações de saúde pública. Por isso que é importante o relato dos casos ao consórcio para fazer chegar às autoridades essas informações”, avalia.
Estas descobertas têm implicações regulatórias para a promoção da saúde pública ao apontar a ação de fármacos comuns na América Latina, que são considerados drogas de segunda linha e não estão mais em uso e tiveram a sua comercialização proibida em outros países devido a toxicidade hepática. Assim, as políticas regulatórias e diferentes padrões de prescrição também ajudam a explicar o aumento da incidência de lesões hepáticas induzidas por medicamentos na região.
Além disso, a elevada taxa de auto medicação na América Latina é outra questão levantada no artigo, que pondera que o hábito das pessoas de tomarem remédios por conta própria, sem indicação médica, pode estar relacionado com dificuldades de acesso aos serviços de saúde, problemas com a disponibilidade de drogas de primeira linha e com as políticas de prescrição e os sistemas que vigilância farmacológicas. Diante desse cenário, o professor Paraná reforça a necessidade de políticas públicas de saúde para sensibilizar a população sobre os potenciais efeitos adversos desses compostos.