A defesa de um financiamento público permanente para as universidades federais foi tema de mesa no segundo dia do Congresso UFBA 2024, em 26 de novembro. O debate reuniu João Carlos Salles, ex-reitor da UFBA e membro da Academia de Letras da Bahia; Nelson Cardoso Amaral (UFG), presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA); e Eduardo Mota, pró-reitor de Planejamento e Orçamento da UFBA. A íntegra da palestra pode ser vista no canal da TV UFBA, no youtube.
Ao saudar a mesa, o reitor da UFBA Paulo Miguez destacou que a discussão sobre financiamento da universidade é fundamental para continuidade de um elemento chave da vida das universidades, que é a sua autonomia.
“Essa é uma das formas de nos estrangularem. É uma das formas de impedir que a autonomia seja plenamente exercitada. E, às vezes, isso é feito com dinheiro ‘chovendo na horta’, mas sem que tenhamos qualquer tipo de ingerência sobre o dinheiro. São dinheiros carimbados. E o dinheiro que chega carimbado é uma forma de desfazer a autonomia da universidade, porque está escrito na nossa Constituição que nós temos autonomia de decidir o direcionamento dos recursos”, disse Paulo Miguez.
O reitor informou ainda que essas questões já foram levadas à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), para que se construa um método, um modelo de financiamento que desatrele a universidade e os imperativos de orçamento. “Da maneira como hoje é feito, qualquer um pode, a qualquer momento, estrangular as universidades. E nós somos um projeto de futuro, portanto não podemos estar constrangidos no curto prazo”.

Pela defesa de uma universidade autônoma
O professor João Salles começou a sua fala que intitulou “Os números, a transparência, o sistema”, sintetizando-a como uma espécie de nota complementar à trilogia de sua autoria (“A mão de Oza”, “O medo e a esperança” e “O balcão”), trilogia parte do livro chamado “Entreato, Exercícios de Política e Filosofia”, que vai ser lançado dia 12 de dezembro de 2024 no Museu de Arte da Bahia. “E eu faço essa menção porque nessa trilogia, na parte relativa às universidades, eu agradeço muito a honra de ter uma apresentação de Marilena Chaui, que faz o seguinte comentário, apresentando meus textos sobre universidade. Vou destacar um pequeno trecho que eu acho fundamental, que coloca uma questão de fundo para nós”
Aqui o professor Salles cita a professora e filósofa Chaui: as ideologias são insidiosas. Fornecendo um imaginário com a aparência de verdadeiro, constituem o pano de fundo do consenso social sobre a realidade econômica, social e política pelo ocultamento de seu sentido. É dessa maneira que estamos mergulhados na ideologia neoliberal que, no plano econômico, produz o desemprego estrutural, fragmentando e dispersando as formas do trabalho dando origem ao precariado, que faz o desemprego estrutural ser vivenciado pelos trabalhadores como culpa por supostamente não preencherem requisitos apresentados como meritocráticos. É também dessa maneira que essa ideologia produz, no plano político, a destruição do Estado de Bem Social, destruindo a democracia cujo fundamento é a criação e garantia de direitos, pois os transforma em serviços vendidos e comprados no mercado, tornando as desigualdades e exclusões ilimitadas e incontroláveis.”
Em seguida Salles justifica a citação dizendo: ”Tomemos isso como um pano de fundo, como uma movimentação de largo espectro, que perpassa governos, sendo contida, por vezes, mas não suspensa efetivamente, com independência de qualquer retórica. Nosso compromisso é com uma instituição disposta na longa duração, cuja essência é ser um projeto de estado e não simplesmente de governo, não podemos perder de vista nosso combate a toda e qualquer manifestação da destruição da universidade.”
João Salles lamenta aqui que “antigos companheiros de luta, com ar de sabedoria e superioridade, como se fossem agora mais vividos e mais bem preparados para a ação, em vez de reforçarem a trincheira sempre improvável e deveras frágil dessa utopia, têm adotado uma posição deveras pragmática”.
“Temos que lidar a todo tempo com a dificuldade generalizada de compreensão da autonomia da universidade que amiúde é reduzida à condição de instrumento […] “Para muitos, é uma prestadora de serviços; para outros, lugar de causas a ela externas; enfim, para tantos outros, é um bom emprego, um espaço que favorece demandas de carreiras, devendo garantir dinheiro e sucesso”.
Adiante, sobre números, João Salles lembra que quando as palavras correm o risco de cair no vazio, números podem ter mais sorte. […] “Números, é claro, não são neutros, não são infensos ao jogo das interpretações, mas talvez provoquem maior indignação, com sua frieza eloquente. Nelson Cardoso Amaral e Weber Tavares da Silva Júnior estão, juntamente comigo, trabalhando com os números neste momento, procurando identificar os danos estratégicos ao financiamento causados pelo crescimento expressivo da transferência de recursos por meio de TEDs e emendas parlamentares”
Universidade “contratada”
O palestrante lembra de dois problemas recentes que dizem respeito à autonomia, lembrando que “é preciso pensar a questão da autonomia e do orçamento da universidade com a ideia de que nós somos um sistema que deve poder realizar, em todos os lugares, ensino, pesquisa e extensão, e ser fonte de ciência, cultura e arte.
“Nós estamos trabalhando seriamente contra ideias antigas que tem a ver com a própria distorção orçamentária, que tem a ver com a sabotagem à autonomia em projeto de nação. Ou seja, temos que lidar a todo o tempo com a dificuldade generalizada de compreensão da autonomia da universidade”, alerta o ex-reitor.
Segundo Salles a redução das universidades à condição de instrumento é a ideia básica da “universidade contratada”, cujo sucesso estaria em atender demandas externas a ela, como se não devesse, nem fosse capaz de estabelecer suas próprias medidas.
“Temos o compromisso com a sociedade, temos demandas a atender, mas fazemos isso traduzindo-as segundo nossa autonomia, segundo nossos princípios, protegendo as diversas áreas e não lançando as áreas todas a uma competição que as tornaria desiguais e não participantes do projeto de universidade. É como se nós não fôssemos capazes de ressignificar as demandas, nem inventar a cidadania que ao fim e ao cabo deve garantir a natureza democrática de nossas decisões”, avalia Salles.
Transparência para fortalecer instituições e bons projetos
Salles destacou a importância da transparência, “pois afinal, quer para atividades finalísticas, quer para atividades meio, a responsabilidade com o recurso público deve ser a mesma. Devemos saber responder (e isso também publicamente) por que meios recursos foram distribuídos e como foram utilizados”.
Para João Salles tal medida de transparência deve ser tomada sem temor e com urgência, porque, a visibilidade não enfraquece, ao contrário, ela antes valoriza a instituição e os bons projetos. E isso se aplica a todos os recursos, mas agora a um excesso relativo de emendas e TEDs, “de sorte que prevaleça entre nós um princípio simples e precioso, a saber: em casa que entra sol não entra médico”, ironiza o professor.
“Não podemos esquecer que os tempos continuam difíceis, e a luta não parece mesmo ter trégua, uma vez que forças conservadoras continuam a atuar fortemente em nosso país, inclusive no interior do governo, de modo que ameaças podem surgir a todo tempo e das mais diversas formas. Desse atavismo conservador ainda hão de decorrer novas mazelas, dessas que nem o tempo é capaz de curar, com o risco de a pauta do Future-se vir a ser realizada no ambiente que, a olhos inocentes, lhe pareceria o mais adverso”, adverte.
E já finalizando, o ex-reitor sinaliza ainda que, paradoxalmente, até a criação irrefletida de novas universidades, como se fossem escolas de terceiro grau, pode afetar o inteiro sistema e atentar contra sua própria natureza
“O interesse da nação (ou mesmo da boa política) pode não prevalecer nesses casos, mas sim o de políticos da ocasião — e só apressados, irresponsáveis ou oportunistas parecem não ver isso. A luta é então tinhosa e difícil, uma vez que, em casos assim, é possível prejudicar com o afago, ferir com a bravata, destruir com a construção”, finaliza João Calos Salles.

Os números do professor Nelson Amaral
Nelson Cardoso Amaral foi um parceiro “precioso” que ajudou bastante o professor João Salles quando na presidência da ANDIFES, “a prover-nos com dados, com números bem organizados, que fizeram parte de nossa resistência”, diz Salles. Então, ninguém melhor do que
Nelson Cardoso Amaral atualmente é presidente da FINEDUCA, – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação. Na palestra, ele identifica os danos estratégicos ao financiamento causados pelo crescimento expressivo da transferência de recursos por meio de TEDs e emendas parlamentares
Por meio de tabelas e gráficos rigorosamente elaborados, Nelson Cardoso Amaral mostrou a série histórica de 2000 a 2024, com ênfase no período de 2014 ao presente ano – a acessibilidade aos dados foi ampliada a partir de 2014..
“Vocês vão ver que as linhas foram traçadas sempre baseadas no que diz a Constituição e o que está previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Não está se reivindicando nada além do que já é previsto (na Constituição e na LDB). Na época que eu li o texto dele (do professor Salles) eu dei um pouco essa ideia: vamos fazer uma apuração de números para comprovar isso que está escrito teoricamente”.
E assim foi feito, mostrando a evolução dos recursos no período que, com os constantes contingenciamentos e bloqueios, além de fatores outros como a inflação, foram se depreciando ao longo desses anos, obrigando as universidades a irem atrás dos recursos providos pelas fundações, pelas emendas parlamentares e pelas TEDs, comprometendo, de maneira significativa a sua autonomia, por conta, também da concessão de privilégios, entre outras distorções.
Ao final, o professor apresentou uma simulação feita para a Universidade Federal da Bahia demonstrando que, com a utilização de um modelo de gestão (proposto pela ANDIFES em 2013, mas não executado), a UFBA poderia ter alcançado um acréscimo de 5,1 bilhões de reais, entre 2001 e 2023. – Veja no canal da TV UFBA no YouTube, em detalhes, essa simulação, as explicações e demonstrações do professor Nelson Amaral.
Situação vexatória
Já concluindo, o professor Nelson declarou que acha “vexatório” que as universidades tenham que “ir a campo” para conseguir dinheiro para pagar água, luz, telefone, vigilância…
“Esse dinheiro é um dinheiro muito especial, deveria ser alocado, (mas) para isso vou ter que correr atrás das emendas parlamentares. O reitor e as pessoas das instituições vão atrás dos deputados e senadores pedindo dinheiro para melhorar as condições de funcionamento da universidade e poder mantê-las funcionando. É deprimente o reitor chegar atrás do deputado e senador e pedir dinheiro para saldar despesas correntes”, avalia.

Por uma universidade não “contratada”
A última participação da mesa coube ao pró-reitor de Planejamento e Orçamento da UFBA, Eduardo Mota, para quem o aumento do volume de recursos de emendas parlamentares e de termos de execução descentralizada (TED) para as universidades federais caracteriza uma verdadeira “contratação” das universidades para realizarem programas e atividades que nem sempre cumprem interesses das universidades como um todo e, sim, de grupos que têm sucesso em fazer essa captação, por iniciativas próprias.
“Isto cria distorções e dificuldades, tanto para a gestão das universidades como para o indispensável equilíbrio entre órgãos e unidades universitárias. Além disso, como esses recursos não são dirigidos à manutenção das universidades, e diante das restrições orçamentárias que se impõem às universidades há uma década, as dificuldades de manutenção e pagamento de contratos administrativos permanecem”, informa Mota.
Para ele, os recursos captados fora da Lei Orçamentária Anual são importantes, porém sem os recursos de custeio e investimentos que devem estar inscritos na Lei Orçamentária, perde-se o histórico dos recursos do Tesouro para a manutenção do ensino superior público.
“Essa “onda contratante” não considera a possibilidade de que as universidades federais sejam chamadas a contribuir para uma agenda de necessidades de interesse nacional, estabelecendo-se parcerias e com chamadas públicas ou editais que dessem oportunidades iguais a todas as universidades de participar e contribuírem”, conclui Eduardo Mota.