Afirmar que “a Liberdade é o bairro mais negro da cidade de Salvador” ou “Cajazeiras é o maior da América Latina” são mitos que, certamente virão abaixo quando os resultados da pesquisa Qualidade Ambiental das Águas e da Vida Urbana em Salvador, realizada pelo Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) da Escola de Administração da UFBA, forem oficializados na nova Lei de Bairros para a capital baiana, cujo projeto foi enviado recentemente pelo executivo municipal para apreciação na Câmara de Vereadores. O estudo, realizado entre 2007 e 2012, delimitou 160 bairros e três ilhas na cidade, estabelecendo um recorte territorial fundamentado na noção de identidade e pertencimento e “tornou possível conhecer Salvador de um modo particular com suas contradições e conflitos, além de ajudar a entender melhor a cidade periférica, nesse cenário de globalização e de precarização”, declarou a pesquisadora Elisabete Santos, professora da Escola de Administração.
A divisão de bairros, firmada como uma das metas do estudo científico – financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e que reuniu uma equipe multidisciplinar de pesquisadores de instituições da federação, estado e município – atualizará a Lei 1.038/1960 que reconhece 32 bairros em Salvador “é um verdadeiro planejamento participativo, uma divisão espacial atualizada, realizada com a comunidade, ouvindo a população real, levando em conta suas características e realidade do momento de realização da pesquisa”, destacou Adalberto Bulhões, que à época da pesquisa era técnico da Prefeitura de Salvador para área de meio ambiente. O estudo, segundo Bulhões, constitui-se como um “grande instrumento para o poder público que poderá trabalhar com exatidão e precisão, não baseando-se mais numa ‘população imaginada’ ou ‘prevista’, já que os limites para os bairros foram propostos usando um sistema de georreferenciamento, baseado em coordenadas e não nos antigos marcos espaciais do território.
“Como a quarta cidade do país em população, Salvador necessita saber de forma clara e precisa, os limites de seus bairros, pois isso impacta no endereçamento e consequentemente, na prestação de todo e qualquer serviço que requereria o nome de uma rua, uma numeração e um nome de bairro”, disse a professora Elisabete Santos, questionando: “onde começa e termina a Pituba e o Itaigara, por exemplo?” Ele afirma também que empresas de serviços como COELBA, EMBASA e Correios precisam se basear em um sistema de endereçamento seguro para prestar um serviço adequado, pois “todo cidadão tem o direito de saber o que significa ter um endereço e a gestão pública precisa fazer planejamento dessa unidade territorial na qual o cidadão se reconhece’, defende a professora.
A oficialização do sistema de informação por bairro, segundo a metodologia da pesquisa, possibilitará que a figura geográfica do bairro entre na base de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para nortear o Censo demográfico de 2020, afirmou o pesquisador Joilson Sousa, que atuou no projeto como assessor do Instituto. Ele defende que “essa oficialização dos dados por uma lei municipal é muito importante porque substitui inferências do censo comum diante de dados estatísticos que afirmam com segurança, por exemplo, que há bairros do Subúrbio Ferroviário com uma população negra maior que a da Liberdade e também a real dimensão das Cajazeiras. Apesar de já serem conhecidas, mas ainda extraoficiais, as novas concepções não puderam ser inseridas no censo realizado em 2010, lamentou Sousa.
Pertencimento e construção coletiva
Os dados levantados podem demonstrar claramente a infraestrutura e desigualdades dos bairros, revelando características socioeconômicas de seus grupos populacionais porque baseou-se no conceito de pertencimento e foram obtidos mediante o conhecimento da cidade (em suas múltiplas facetas) e a vivência do morador, segundo a professora Elisabete Santos. “Quando você pergunta a uma pessoa onde ela mora, a resposta é sempre direta e clara: Moro em Pau da Lima, Amaralina, na Barra. Por trás dessa resposta existe uma relação de pertencimento, de identidade. Foi essa associação que nos indicou o caminho para a construção coletiva do trabalho”, contou Elisabete.
Levando em conta a noção de pertencimento, características urbanísticas e históricas, uma equipe multidisciplinar – compostas por economista, arquiteto, engenheiro, historiados, estatístico, administrador, técnico em georreferenciamento – norteada pelo Sistema de Informação e Georrefenciamento Metropolitano (INFORMS) da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder), percorreram a cidade de Salvador, de ponta a ponta, informou Lívia Grabielli, que na época da pesquisa era diretora de planejamento e gestão urbana da Conder. Os profissionais faziam reconhecimento preliminar e levantamento histórico do bairro e depois convidavam representantes da comunidade para reuniões onde eram apresentadas as delimitações daquele bairro, até então existentes, contou Gabrielli.
Elisabete lembra que na época havia várias bases com delimitações dos bairros (SEDHAM/PMS – 158 bairros; Correios – 187; IBGE – 241; Escola politécnica da UFBA – 206 e Secretaria de Segurança Pública e CONDER – 198) que eram apresentadas aos moradores. Então, eles “eram convidados a desenhar os limites do seu bairro, conforme o sentimento de pertencimento da comunidade”, acrescentou Gabrielli.
Ela conta que foram realizadas 2.130 entrevistas com representantes comunitários e a professora Elisabete contabiliza 2.122 reuniões com associações e aplicação de 21.175 questionários. A participação coletiva da população foi fundamental, pois além de fornecer dados para a gestão urbana propor políticas, executar obras e prover equipamentos urbanos, desperta o interesse das pessoas em cobrar o cuidado pelos limites de sua comunidade, avaliou a diretora da Conder.
“À medida que as discussões aconteciam, surgiam os debates relacionados à cultura e identidade”, pontuou a produtora cultural Fátima Fróes que também participou do projeto como pesquisadora. Os relatos não permitiram recriar unicamente a memória dos bairros, mas conscientização do papel daqueles moradores em suas comunidades, disse ela, lembrando que foi a produtora executiva do livro “Caminho das Águas em Salvador” que condensa, em 490 páginas, toda a atividade realizada no projeto.
Bairro e localidade
Elisabete Santos relata que a pesquisa definiu bairro como uma “Unidade territorial com consolidação histórica que incorpora a noção de pertencimento das comunidades que o constituem; que utilizam os mesmos equipamentos comunitários; que mantêm relações de vizinhança; e reconhecem seus limites pelo mesmo nome”. Já a Localidade é uma porção menor do território, inserida parcial ou totalmente em um bairro, sem centralidade definida e que apresenta características socioeconômicas similares. A localidade possui elementos específicos da estruturação e complexidade urbana, podendo ser um loteamento ou um conjunto habitacional de pequeno ou médio porte que se tornou referência; uma pequena ocupação informal ou uma ocupação ao longo de uma avenida.
Também existe o Centro de bairro, uma área para a qual convergem e se articulam os principais fluxos do bairro ou da região, dotado de variedade de serviços, infraestrutura e acessibilidade. Esses conceitos servem exatamente para tornar mais claro o que está sendo instituído como bairro. A professora esclarece que alguns declaram: “eu moro em São Lázaro”, mas São Lazaro não é um bairro, é uma localidade no bairro da Federação. Por outro lado, localidades que até então não eram caracterizadas como bairro foram definidas como tal, a exemplo do Calabar, explicou.
Pesquisa em parceria
O estudo foi movido pela necessidade do grupo do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS) da Escola de Administração da UFBA que trabalha com águas de fazer um estudo sobre a qualidade dos rios em Salvador, foi realizado entre os anos de 2007 a 2012, viabilizado por um edital do MCT/CNPq/CT-Hidro/ CT-Agro que disponibilizou, em 2007, cerca de R$ 90.00,00 para todo o trabalho. Com poucos recursos, Elisabete conta que “o que tornou esse trabalho possível foi a articulação institucional, um termo de cooperação técnica, firmado entre a UFBA, Prefeitura Municipal (na época a SEDHAM, SMA, SUCOM, FMLF), o Governo do Estado (CONDER, SEM, IMA, INGA, EMBASA IRDEB, TVE, IBGE) e a Fundação OndaAzul”
A degradação dos rios de Salvador, que tem sido transformados em esgotos, mobilizou o grupo, pois a cidade, na época não tinha dados sobre a qualidade das suas águas, nem uma delimitação da suas bacias hidrográficas. Ao discutir a situação dos rios e o conceito de bacia hidrográfica, os pesquisadores perceberam que a cidade tinha perdido seus laços com os rios. Os jovens se referiam ao rio Camarajipe como “canal”, fonte de doença e de incômodo – quando alagava a situação ficava ainda pior. Só os moradores mais antigo que guardavam a memória de quando o canal era um rio – onde brincavam, pescavam e até abasteciam a casa de água. Constatou-se que a relação entre o morador e o rio era de estranhamento e a noção de bacia hidrográfica não tinha nenhum significado para ele.
Com o apoio de uma equipe técnica da Prefeitura e do Governo do Estado, os pesquisadores percorreram toda cidade fazendo coleta de água, delimitando bacia e os bairros. O professor Luiz Roberto Moraes, da Escola Politécnica bateu na porta da EMBASA, marcou uma reunião com o Presidente, Abelardo Oliveira e mostrou para ele a importância da EMBASA disponibilizar os seus laboratórios para fazermos a análise das águas, lembrou Elisabete.