João José Reis conquista o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras

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279-premio-machado-assis-grandeO historiador João José Reis, professor titular do Departamento de História da UFBA, venceu o Prêmio Machado de Assis, concedido anualmente pela Academia Brasileira de Letras a um intelectual pelo conjunto da obra. Reis é considerado referência mundial para o estudo da história e da escravidão no século XIX no Brasil.

A entrega da premiação será feita no Salão Nobre do Petit Trianon, no Rio de Janeiro, no dia 20 de julho, durante as comemorações pelos 120 anos da fundação da ABL. A honraria inclui a concessão de R$ 100 mil ao vencedor.

Professor da UFBA desde 1979, Reis é formado em história pela Universidade Católica do Salvador, tem mestrado e doutorado pela Universidade de Minnesota e diversos pós-doutorados, que incluem a Universidade de Londres, o Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences, da Universidade Stanford, e o National Humanities Center. Também foi professor visitante da Universidade de Michigan, Universidade Brandeis, Universidade de Princeton, Universidade do Texas e Universidade Harvard.

A UFBA parabeniza o professor João José Reis, e o Edgardigital aproveita a ocasião para republicar dois textos sobre a trajetória do destacado historiador baiano, veiculados no ano passado no Calendário das Ciências, e links para duas reportagens e um vídeo acerca do seminário internacional “Poder e Dinheiro na Era do Tráfico”, realizado na UFBA neste ano, sob sua coordenação.

O passado do Brasil é africano, e o futuro? talvez seja africano

Seminário debate economia mundial em torno do tráfico de escravos

 

João José Reis, um grande historiador na Bahia

por Mariluce Moura, para o Calendário das Ciências

João José Reis, professor titular de história da UFBA, completou no dia 24 de junho, dia de São João, 65 anos. Um dos mais importantes historiadores do Brasil e referência mundial para os estudos da história da escravidão no século XIX, como apropriadamente o apresenta a Wikipedia, ele é, em paralelo a essa qualificação, uma personalidade singular. Quem mais, por exemplo, numa multidão de quase 3,1 milhões de donos de currículos cadastrados na Plataforma Lattes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), diz na primeira linha do resumo do próprio currículo, atualizado em 3 de junho de 2016: “O pesquisador é a favor da manutenção e valorização do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e a favor do retorno à normalidade democrática no Brasil”?

Só na sequência ele dirá, como se neste momento a informação secundária fosse, “além disso, possui graduação em história pela Universidade Católica do Salvador (1974)”, e seguirá em frente dentro do padrão usual desses textos. Ao acompanhá-lo, tomamos conhecimento de que este baiano de Salvador, nascido na Ribeira, pesquisador de nível 1-A do CNPq, também fez graduação em ciências sociais na UFBA (1971-75), mas não concluiu o curso. E obteve os títulos de mestre (1977) e de doutor em história (1982) pela Universidade de Minnesota, Estados Unidos.

João José Reis acumula alguns pós-docs: na Universidade de Londres; no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Comportamento/Universidade Stanford; no Centro Nacional de Humanidades/Research Triangle Park, Carolina do Norte; e na Universidade Harvard, entre outras instituições. E como professor visitante já trabalhou nas universidades norte-americanas de Michigan, em Ann Arbor, Princeton, Brandeis, Texas, em Austin, Harvard, e na francesa École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Por ora, entretanto, vamos deixar o passo a passo do percurso acadêmico que consta no resumo do Lattes e passar à frente um dado marcante na trajetória desse pesquisador brilhante. De que se trata? Reis é autor de obras históricas de grande importância, com incursões claras na literatura, e isso não tem passado em branco. Assim, seu livro “A morte é uma festa” ganhou entre outros o Prêmio Jabuti de melhor obra, categoria Ensaio, em 1992, e o Prêmio Haring, da Sociedade Americana de História, em 1997. “O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro”, resultado de co-autoria com Flávio Gomes e Marcus Carvalho, recebeu o Prêmio Casa de las Américas, de Cuba, na categoria Literatura Brasileira, em 2012. E pelo conjunto da obra, ele ganhou em 2014 o prêmio da Academia de Letras da Bahia.

Entre seus livros estão também “Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835)”, lançado pela Brasiliense em 1986; “Negociação e Conflito: resistência negra no Brasil escravista”, em co-autoria com Eduardo Silva, publicado pela Companhia das letras em 1989 e “Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX”, lançado pela Companhia das Letras em 2008. Parte de suas obras está traduzida para o inglês e ele é organizador de vários outros livros, de tal forma que no Lattes encontramos 13 itens na rubrica “Livros publicados/organizados ou edições”.

Mas de onde veio o historiador respeitado? João, o menino, cresceu num bairro então geograficamente periférico e ainda hoje socialmente periférico, “numa vizinhança bucólica de pequena classe média”, como apontou em entrevista para o livro “Conversas com historiadores brasileiros”, organizado por José Geraldo Vinci de Moraes e José Marcio Rego, publicado pela Editora 34, em 2002. Ele viveu na Ribeira seus primeiros 20 anos. “Cresci num ambiente de bairro, de pés descalços na rua, jogando bola, pescando siri, tomando banho de mar todo santo dia, uma infância maravilhosa de moleque”.

Na mesma entrevista ele contou que a mãe tinha origem humilde, filha ilegítima que era de uma operária têxtil com o farmacêutico do bairro. Sempre dona de casa, muito inteligente, leitora com muito gosto, ela comandava a prole de sete filhos, dos quais João era o penúltimo, ocupando-se em botá-los a estudar, em paralelo às tarefas domésticas que tocava, auxiliada por uma empregada e, eventualmente, por sua mãe, que morava com eles.

“São de minha mãe as lembranças mais vivas de minha infância. Além de dirigir a casa, era ela quem controlava as brincadeiras e a vadiagem, era também quem nos levava, quando crianças, para o cinema, o Carnaval, praias distantes (só para variar, porque morávamos à beira-mar)”. João conclui essas lembranças de uma forma entre doce e divertida: “Recebi muito esporro da mãe, alguns tapas e muito afeto”.

Sobre o pai, funcionário do Banco Econômico enquanto o menino crescia, ele relatou na entrevista para “Conversas com historiadores brasileiros” que era originário de uma família muito pobre, tinha perdido o pai aos 10 anos, e desde então não parara de trabalhar até quase os 80 anos. “Começou como office-boy e chegou a gerente de banco, contador da matriz, essas coisas. Contava isso com orgulho”, disse. Aposentou-se do banco nos anos 1960 para fazer com o dinheiro da indenização uma cirurgia delicada, e depois voltou a trabalhar numa empresa de um dos donos do Econômico. “Não conseguia viver da aposentadoria que recebia. Meu pai era um homem honesto, generoso, reservado, trabalhador, mulherengo, gostava de jogar cartas a dinheiro, apostava na loteria, no bicho”. Morreu no começo dos anos 2000.

Era jovem ainda João quando, em 1979, se tornou professor da UFBA, já lá se vão 38 anos de uma consistente carreira de professor/pesquisador. Sua produção de artigos completos publicados em periódicos é respeitável, alcançando até aqui 52 itens. Os capítulos de livros chegam a nada menos que 54. E o professor tem uma vida acadêmica extremamente ativa, se tomamos como expressão disso a participação em bancas de defesas de trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses, e bancas de concursos. Orientou até agora 27 dissertações de mestrado e 5 teses de doutorado, além de duas que estão em curso.

Seu olhar está voltado para a história do Brasil Império e a história Atlântica, campos dentro dos quais tem pesquisado os temas de história social e cultural da África, da escravidão e do tráfico; resistência escrava; movimentos sociais; atitudes diante da morte.

E, no que diz respeito a outros prêmios e distinções, João José Reis recebeu a Comenda do Mérito Científico do Ministério da Ciência e Tecnologia, nas classes de comendador (2004) e da Grã Cruz (2010), e é membro honorário estrangeiro vitalício da American Historical Association. Um belo percurso.

 

João José Reis: sobre leituras, militância e história

por Mariluce Moura, para o Calendário das Ciências

O historiador João José Reis atribui ao ambiente escolar, e não ao familiar, a influência decisiva em sua trajetória de pesquisador e, aliás, reage com um aliviado “ainda bem” à constatação de que a casa “não era exatamente uma escola”, o que lhe permitiu gozar seu tempo de menino em relativa paz, com muita vadiagem cotidiana e regular “na maré”, uma vez feito o dever de casa.

“Minhas influências intelectuais maiores vieram mansamente, da irmã mais velha, que é hoje antropóloga e colega de faculdade (até pouco tempo foi minha diretora), e dos próprios colegas, a partir do ginásio”, disse ele em entrevista para o livro “Conversas com historiadores brasileiros”, organizado por José Geraldo Vinci de Moraes e José Marcio Rego, lançado pela Editora 34 em 2002, portanto, 14 anos atrás.

Até o ginásio e com exceção do período de alfabetização, Reis estudou sempre em escolas públicas do bairro, que eram boas em seu entendimento. “Tive aula de latim, de música, frequentei laboratórios de química e biologia, misturei líquidos em tubos de ensaio (sem explodir nada), abri barriga de sapos e lagartos com bisturi”, ele contou na referida entrevista. Teve ótimos professores em cada etapa e, no colegial, eram profissionais que também ensinavam ou viriam a ensinar na universidade. Nessa época ele já estudava longe da Ribeira, no Colégio da Bahia, o famoso Central, em Nazaré.

Mas ainda no ginásio, de 14 para 15 anos, sua “politização” tivera início. “Foi aí que começou minha encucação, as leituras extra-classe. Entre 15 e 20 anos li muita ficção, nada verdadeiramente sistemático, de Conan Doyle (o autor das peripécias de Sherlock Holmes) a Fernando Pessoa, muita literatura russa (Dostoiévski, Gogol, Kuprin, Tchekhov)”. O relato de João José Reis sobre esses anos de formação tem trechos francamente divertidos, por exemplo, quando explica que, dado que estava virando comunista, leu tudo de Gorki e fez muita gente lê-lo, “principalmente o meloso A mãe”, que achava o máximo.

Jorge Amado, em especial o dos romances socialmente engajados, não lhe escapou, nem os autores do realismo mágico latino-americano, e em paralelo vieram os manuais do marxismo. “Estudava e discutia o marxismo estalinista de Afanassiev, Politzer, e outros manuais que hoje acharia intragáveis. Mas lia também Che, Castro (“A história me absolverá”), Debray, enfim, o pessoal da guerrilha”.

João Reis entrou no Central no fervilhante ano de 1968. “O colégio era o ponto mais quente das atividades de resistência à ditadura na cidade, mais importante do que a própria universidade. Não exagero. É fato conhecido da política baiana. E aquele foi o ano de uma passeata atrás da outra, de corre-corre, gás lacrimogêneo, prisões”, ele relembrou na entrevista. João estava em toda essa movimentação, sem se vincular a grupos ainda. Conversava com vários, estudava. Ele localiza justamente aí seu gosto consciente pelo estudo de sociologia, economia, história. “Li muito sobre as revoluções, a soviética, sobretudo, inclusive a trilogia de Isaac Deutscher sobre Trotsky”, relatou. E leu tanto sobre Trotsky, sua visão da revolução e da cultura, que terminou se associando à OPP (organização para-partidária) do que viria a ser o MR-8.

Sua militância estudantil incluiu, principalmente a partir de 1969 – quando a situação ficou muito difícil e o Colégio Central foi praticamente ocupado militarmente, muros foram construídos, líderes estudantis, expulsos e presos – acolher na casa de seus pais companheiros em fuga, fazer panfletagem em bairros populares, estabelecer ligação entre militantes na clandestinidade e familiares, e até treinar tiro ao alvo. Uma breve prisão de algumas horas para averiguação lhe aconteceu em 1969 e, em 1971, prestes a entrar na Faculdade, houve nova prisão de alguns dias. “Mas então eu já havia ‘desbundado’, como então se dizia de quem desistia da luta armada”, ele contou.

A militância e o marxismo fizeram João pensar em fazer economia, que “naquela época parecia a mesma coisa que ser comunista”. Com certa influência da irmã mais velha, economista antes de se tornar antropóloga, a sociologia lhe pareceu depois mais adequada para entender e transformar o mundo. E, finalmente, história lhe pareceu um bom caminho por influência de um famoso professor de pré-vestibular daqueles anos, Alberto Goulart Paes Filho, tenente-coronel do Exército, reformado porque distribuíra a seus alunos no Colégio Militar exemplares de um documento fundamental para entender a história política e social europeia no século XIX – o “Manifesto comunista”. Em 1971 ele entrou ao mesmo tempo na UFBA, para cursar ciências sociais, e na Católica para cursar história, amparado por uma bolsa que Goulart conseguira para ele com a professora Katia Mattoso. Estava pronto o caminho para surgir o historiador.

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