Uma constatação: os seres e os povos humanos se norteiam por uma infinidade de crenças. Uma questão: entre elas, quais podem ser consideradas fundamentais, universais, inegociáveis? Esse foi o assunto da instigante palestra professor de Teoria e Filosofia Política da Universidade Federal Fluminense Renato Lessa, no ciclo Mutações, no dia 14/10, no Salão Nobre da Reitoria da UFBA.
Lessa expôs ao público a ideia de que a vida seria simplesmente impossível se prescindíssemos de “sistemas de crenças”, pois, afinal, eles são “maneiras de interpretar o mundo”. “As pessoas agem em função de suas crenças. A crença é um hábito de ação, é acreditar em alguma coisa. E essa ‘acreditação’ nos leva a agir de uma determinada maneira, em vez de outra”, explicou.
A constatação de que a vida humana é norteada por múltiplos sistemas de crenças, segundo Lessa, é fruto do olhar de uma determinada tradição filosófica: o ceticismo. Justamente pelo fato de os céticos “sustentarem a possibilidade de viver no mundo sem sustentar crenças” (ou seja, o cético é todo aquele que se opta por “se orientar pelo juízo dos fenômenos, sem doutrina sobre como as coisas devem ser”, uma espécie de “crença numa vida sem crenças”) que o ceticismo clássico postulou uma espécie de insuperável pluralidade dos sistemas de crenças – seja no interior de um mesmo grupo social, seja em grupos diferentes.
Foi através do ceticismo, afirmou Lessa, que a humanidade pôde reconhecer não apenas a pluralidade das crenças, como o fato de elas serem, muitas vezes, inconciliáveis. Assim, contrariando tanto os “dogmáticos” (que acreditam que as crenças são imutáveis) quanto os “acadêmicos” (que postulam que as crenças são meras fantasias), os céticos se contentaram em reconhecer a realidade das crenças e sua funcionalidade enquanto geradoras de processos de empatia e sociabilidade – e então, partindo dessa constatação, se propuseram a tentar entender sobre que pilares fundamentais elas se assentam.
É justamente do entendimento de que a crença é um elemento “produtor de sociabilidade” que emerge a proposta de Lessa de uma “antropologia da crença”, voltada a “olhar para as camadas mais básicas da crença, sobre as quais se assentam as outras crenças da vida”. Nesse sentido, ele procurou delinear o que seriam os três princípios básicos da crença: o “tripé estar no mundo; estar no tempo; e estar consigo mesmo”. “Qualquer crença se dirige ao mundo, a alguma coisa fora de mim; tem a ver com a possibilidade de aprender com a experiência, com a memória; e tem como ponto de partida nossas próprias capacidades pessoais de entender a experiência”, define.
Assim, seriam três os tipos de crença fundamentais: a crença na existência de um mundo exterior, e a consequente necessidade de construir explicações sobre “como é esse mundo”; a crença de que os acontecimentos vividos (a memória) “constituem uma base legítima e valiosa para construir expectativas e projetos futuros”; e, por fim, a capacidade individual de sustentar convicções.
No contexto dessa suposta “natureza humana”, dois tipos de situações, segundo Lessa, aparecem como “insuportáveis” para as pessoas: “a indeterminação – ou seja, a imprevisibilidade, o acaso – que, embora sejam algo belíssimo esteticamente e encantador filosoficamente, são insuportáveis na vida” e o “sofrimento extremo ou o trauma” experimentado em situações limítrofe como, por exemplo, nos campos de concentração nazistas.
Seriam essas, portanto, as chamadas “crenças tectônicas”, ou seja, crenças básicas, inegociáveis, sobre as quais são estruturadas todas as outras “crenças intercambiáveis” – concluiu Lessa, exaltando o papel da filosofia política enquanto disciplina que tem por tarefa a busca pelo “que não pode acontecer”, ou seja, pelas bases comuns inegociáveis da vida política e social.