Estabelecer uma epistemologia científica a partir dos saberes milenares do povo bakongo é um dos objetivos do professor Eduardo Oliveira, do Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC-UFBA), sediado na Faculdade de Educação.
Iniciado no culto de Ifá, suas pesquisas até então se davam em torno das mitologias dos Orixás (de origem iorubá) e da perspectiva da transformação destes mitos em conceitos e categorias de análise da realidade social. Vale lembrar que boa parte do conhecimento científico ocidental, como a filosofia e a psicanálise, baseou-se na mitologia grega como paradigma e metáfora; logo, a utilização de saberes africanos se constituiria uma perspectiva decolonial de conhecimento.
“Por conta da predominância da cultura nagô nas pesquisas acadêmicas e na própria religião de matriz africana, iniciei minhas pesquisas neste campo”, conta o professor, que em seu livro Cosmovisão Africana no Brasil, trabalhou com três reinos: Mali, Songhai e Ghana. Ao ser cobrado pela própria comunidade do candomblé congo/angola (de matriz bantu), decidiu pesquisar melhor estes povos que foram historicamente desprestigiados na tradição antropológica brasileira, em um processo conhecido como “nagocentrismo”.
A linhagem de estudos que vem de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Édison Carneiro e outros erigiu uma família de santo de matriz ketu como o modelo de pureza e autenticidade. Privilegiando o modelo nagô nos estudos e pesquisas e tendo-o como referência no processo de articulação política pela legitimação do candomblé, estes intelectuais estabeleceram um modelo dominante a ser seguido pelos demais terreiros. Nesta literatura antropológica, os candomblés congo/angola e de caboclo eram considerados inferiores e descaracterizados.
“Eu comecei por perceber aspectos nagô nas religiões bantu, que é o mais óbvio, mas depois pensei: isso não respeita o processo histórico, os bantu chegaram dois séculos antes. A tese que desenvolvo hoje é de que o culto nagô foi bantuizado, os nagôs construíram em cima de uma base bantu. Para compreender melhor este processo, é necessário fazer uma arqueologia. E os bakongo já faziam arqueologia séculos antes de Foucault”, explica Eduardo. Pesquisador da filosofia africana e afro-brasileira, Eduardo é coordenador da Rede Africanidades e autor dos livros “Cosmovisão Africana no Brasil” (2003) e “Filosofia da Ancestralidade” (2007), entre outros.
Aplicação acadêmica
As pesquisas atualmente desenvolvidas pelo professor e pela Rede Africanidades têm como base o trabalho do Dr. Bunseki Fu-Kiau (1934-2013). Existem atualmente algumas pesquisas em andamento no DMMDC a partir do cosmograma bakongo e dos escritos do Dr. Fu Kiau. “Não podemos fazer um estudo antropológico da sociedade bakongo porque isso exigiria um trabalho de campo aprofundado. Estudamos o cronograma sob a perspectiva epistemológica, de um regime semiótico, um caminho para interpretação da experiência”, explica o professor Eduardo.
Entre as pesquisas, encontra-se a do doutorando Cinézio Peçanha, mais conhecido como Mestre Cobra Mansa, intitulada “Renascimento do Engolo do grupo Nyaneka-Humbe em Angola – Como as culturas que têm em seus fundamentos o jogo de corpo e ancestralidade passam pelo processo de morte e renascimento de suas práticas”. Parte dos resultados dessa pesquisa podem ser vistos no documentário “Jogo de Corpo – Capoeira e Ancestralidade” (2013).
Outro doutorado em andamento no programa é o de Sérgio São Bernardo, professor assistente da UNEB e militante do movimento negro. Com o título provisório de “Ética do Discurso, Ética da Libertação e Direito Alternativo”, se propõe a pesquisar experiências de mediação de conflitos e justiça comunitária a partir de experiências africanas. No artigo “Kalunga e o direito: a emergência de um direito inspirado na ética afro-brasileira”, publicado no portal jurídico Justificando, ligado à Carta Capital, ele questiona: “ É possível afirmar um direito africano ou afro-brasileiro? Este direito pode ser universalizável como pressuposto de justiça a outras comunidades não africanas? ” Os debates perpassam os campos da antropologia jurídica, da filosofia africana e da filosofia do direito.
Para além da produção acadêmica stricto sensu, a Rede Africanidades tem realizado uma série de encontros e minicursos de filosofia africana que divulgam o pensamento bakongo e inspiram outras articulações intelectuais, nos campos da arte, espiritualidade, autoconhecimento e militância política. No evento Poética e Ancestralidade, realizado na Escola de Dança da UFBA em meados de janeiro, aconteceu uma vivência, onde as diferentes reações somáticas e psicológicas dos participantes são partilhadas e discutidas, visando uma compreensão do cosmograma bakongo.
Cosmograma
Mas afinal, o que é o cosmograma bakongo? Trata-se de uma mandala também conhecida como “Diekenga”, uma representação simbólica dos grandes ciclos do sol, da vida, do universo e do tempo. Ao centro do círculo, uma cruz o divide em quatro etapas. A linha horizontal separa o mundo do vivo do mundo dos mortos. Chamada Kalunga, ela também é uma representação do mar como um grande cemitério a conectar mundos.
O cosmograma bakongo, círculo dividido por uma cruz (anterior à chegada do cristianismo nesta região), pensa a existência humana como um grande ciclo dividido em quatro etapas, integrando o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, divididos pela linha de Kalunga. “A criação do mundo, a vida humana e os grandes processos sociais são explicados através deste cosmograma, que funciona como uma grande metáfora do ciclo vital”.
“Do ponto mais baixo do círculo, à meia noite do trajeto solar, dá-se a concepção e vem Musoni, em amarelo, o tempo de germinar, do crescimento silencioso que antecede o nascimento. Após o nascimento acontece Kala, representado pela cor preta, tempo de crescimento, aprendizado. Com o amadurecimento vem Tukula, em vermelho, o ápice da liderança, da força, quando a linha vertical faz a conexão direta com o mundo dos ancestrais. Após o sol ao meio dia, se inicia o processo de decadência que inevitavelmente levará à morte física, Luvemba, representado pelo branco dos ossos, do pó, deste tempo de silêncio que antecede outro grande ciclo vital”, explica Oliveira.