Ciência e cultura juntas na UFBA na abertura do Fórum Social Mundial 2018

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SALVADOR, BAHIA, BRASIL: 13.03.2018 - FÓRUM SOCIAL MUNDIAL - Abertura do Fórum Social Mundial, na reitoria da Universidade Federal da Bahia. A cerimônia homenageou o casal de cientistas Sônia Andrade e Zilton Andrade, e o artista plástico e escritor mestre Didi. Foto: João AlvarezJoão Alvarez

Campo e contracampo: na imagem de abertura, a Orquestra de Frevos e Dobrados diante da mesa de autoridades: aqui, a orquestra mira o público que lotou o salão nobre da reitoria

 

Lentamente, o casal de cientistas Zilton Andrade, 93 anos, e Sônia Andrade, 89, atravessou no começo da tarde da terça-feira, 13 de março, o corredor central do salão nobre da reitoria da UFBA, em meio ao silêncio reverente de mais de 400 pessoas que lotavam o espaço. Quando finalmente, cerca de 10 minutos depois, o reitor João Carlos Salles os chamou para a mesa da solenidade de abertura da participação da Universidade no Fórum Social Mundial 2018, na qual eram homenageados, a plateia em peso levantou-se e longamente os aplaudiu de pé.

ContenteJoão Alvarez

Reitor João Carlos Salles, os cientistas Sonia Andrade, Zilton Andrade e Eliane Azevedo e o compositor e professor Paulo Lima

Várias outras vezes, naquela tarde, Sônia e Zilton, ambos professores eméritos da UFBA e pesquisadores ainda em atividade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-Bahia), seriam tratados com palmas de entusiasmo e emoção. Mas sobraria no público energia para aplaudir também com o mesmo vigor o outro homenageado, em memória, o mestre Didi, por batismo Deoscóredes Maximiliano dos Santos, artista plástico, sacerdote e expoente da cultura afro na Bahia, cujo centenário ocorrera em dezembro passado. Suas filhas, Maria Nídia dos Santos e Inaycira Falcão, o representaram, e a segunda reservava secretamente momentos de puro encanto para o público.

SALVADOR, BAHIA, BRASIL: 13.03.2018 - FÓRUM SOCIAL MUNDIAL - Abertura do Fórum Social Mundial, na reitoria da Universidade Federal da Bahia. A cerimônia homenageou o casal de cientistas Sônia Andrade e Zilton Andrade, e o artista plástico e escritor mestre Didi. Foto: João Alvarez

Nancy, diretora da Escola de Belas Artes, e Cajahiba, diretor da Escola de Teatro, entregam flores a Maria Nídia dos Santos e Inaycira Falcão, filhas de mestre Didi

Composta a mesa pelo reitor, mais o vice-reitor Paulo Miguez, os cientistas homenageados, as filhas do Mestre Didi e a ex-reitora da UFBA, Eliane Azevedo, também ela cientista, a cerimônia foi iniciada com uma saudação aos “ojés”, ancestrais na religião de matriz africana, feita  por membros do Terreiro Ilê Axé Axipá, uma das principais fontes de inspiração de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi. A Orquestra de Frevos e Dobrados, regida pelo maestro Fred Dantas, entrou em ação logo a seguir, começando pela execução do Hino Nacional.

O reitor João Carlos Salles daria em sua fala nessa solenidade o tom que marcaria nos dias seguintes a participação da UFBA no Fórum Social Mundial 2018. “As instituições públicas, como as universidades, não deixam de servir ao longo do tempo às elites, mas elas têm por vocação, destino, servir à liberdade, servir à democracia. São o lugar da ampliação de direitos, do combate às desigualdades e por isso mesmo não podem deixar num momento como esse de se posicionar”.

Foi explícito sobre o porquê de a UFBA ter oferecido desde outubro do ano passado suas instalações para abrigar o evento na Bahia. “A Universidade Federal da Bahia tem a honra, nesse momento de ser parceira do Fórum Social Mundial. Nós estamos acolhendo um grande evento, um lugar de reflexão, de crítica, de resistência, porque nesse momento resistir é defender o melhor da nossa natureza. Sonhar, sim, que outro mundo é possível, um mundo diferente, sem desigualdades, um mundo livre, mas nenhum mundo possível vale a pena sem uma universidade pública de qualidade”.

ojês e povo

membros do Terreiro Ilê Axé Axipá se deslocam pelo meio do salão…

SaudaçãoJoão Alvarez

… para saudar os “ojés” e dar partida aos trabalhos

 

 

 

 

 

 

 

Saudações e homenagens

As saudações a Zilton e Sonia Andrade foram feitas pelo diretor da Faculdade de Medicina da UFBA, Luís Fernando Adan (íntegra abaixo) e pelo professor Mitermayer Reis. O professor Zilton fez questão de ler seu agradecimento e da professora Sonia (íntegra também abaixo) pelas homenagens recebidas da UFBA.

A saudação a Mestre Didi coube ao professor Marcos Aurélio Luz, da Faculdade de Educação. “Foi um dos grandes líderes religiosos da Bahia, reposicionou a tradição da ancestralidade da religião africana no Brasil”, definiu, encerrando sua fala com um canto em homenagem a Ogum. O momento das homenagens a Mestre Didi foi tempo de ouvir também inesperados cantos da cultura afro interpretados em clima de encanto pela filha Inaycira, cantora lírica dona de poderosa e bela voz.

Encerrada a cerimônia na reitoria, participantes foram em marcha até o Campo Grande para se juntar à concentração da marcha de abertura do Fórum Social Mundial 2018, que seguiu pelo centro de Salvador com milhares de pessoas até a Praça Castro Alves.

Marcha

Alegria na concentração para a marcha: da reitoria ao Campo Grande e de lá até a Praça Castro Alves

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A fala de Luiz Adan

Zilton & Sônia

Luiz Fernando Fernandes Adan

 

Grande parte das pessoas aqui presentes, neste dia em que a UFBA abre suas portas ao Fórum Social Mundial, certamente conhece o professor Zilton de Araújo Andrade e a professora Sônia Gumes Andrade, sabe de sua valiosa contribuição para o crescimento da medicina do Brasil e da projeção internacional dos seus trabalhos. Este reconhecimento se deve não só pela atuação como estudiosos de doenças tropicais, como também pela formação de muitas gerações de médicos, professores e pesquisadores, espalhados mundo afora. Ambos, Sônia e Zilton, ajudaram a escrever a história do que hoje é conhecida como a Escola de Patologia da Bahia.

Zilton nasceu em 14 de maio de 1924 em Santo Antônio de Jesus, Bahia. Aluno brilhante veio para Salvador como interno do Colégio Ipiranga, e após o ginasial, cursou o científico no Colégio da Bahia. Ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1945 e concluiu o curso em 1950.

Sônia nasceu em Caetité, Bahia, em 1928, em uma família de grande influência cultural na cidade. Sua mãe, Marieta, foi a primeira professora da região a lecionar para uma classe de homens, entre os quais, encontrava-se Anísio Teixeira. Seu pai, Huol Gumes, jornalista, era filho de João Antônio Gumes, professor, escritor e jornalista que fundou em 1897, “A Penna”, primeiro jornal do alto sertão baiano. Sônia mudou-se para Salvador e entre 1941 e 1947, fez os cursos ginasial e científico no Ginásio da Bahia. Em 1948, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, onde se diplomou em 1953. Neste mesmo ano, casou-se com Zilton, que conhecera durante o curso médico e que retornara da Residência Médica em Patologia na Tulane University School of Medicine, em Nova Orleans, sendo o primeiro médico a ter esta formação na Bahia. Logo em seguida, Zilton se tornou professor da Faculdade de Medicina da Bahia.

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Saudação de Luiz Adan, diretor da Faculdade de Medicina, aos cientistas homenageados

Ambos trabalharam no Instituto de Saúde Pública da Bahia, mais tarde Fundação Gonçalo Moniz, criado por Octávio Mangabeira Filho, copiando o modelo do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. Foi ali que Zilton, inicialmente conhecera, em 1949, o Prof. Samuel Pessoa, cientista engajado socialmente, voltado às doenças parasitárias que acometiam as camadas menos favorecidas da população. Com Samuel Pessoa, desenvolveu seu primeiro trabalho científico sobre Filariose, em investigações realizadas na Pedra Furada, em Itapagipe. No Instituto, trabalhando com o pesquisador Paulo Dacorso Filho, Zilton se encantou pela anatomia patológica. Após a partida do Dr. Dacorso, ficou responsável pelo Laboratório de Patologia, onde agregou outros estudantes, dentre os quais, Sônia.

Em 1958, foi criado o Programa de Residência Médica em Clínica Médica no HUPES e foi a partir desse momento que, em parceria com os Profs. Roberto Santos e Heonir Rocha, ganharam fama as célebres sessões anátomo-clínicas do HUPES. Zilton e Sônia também protagonizaram a Residência Médica em Anatomia Patológica, curso dinâmico, moderno e com volumosa produção científica que pôs a patologia baiana em destaque no Brasil e no mundo. Nesse ambiente, formou-se um grande número de patologistas que atuam hoje na Bahia e em outras regiões, tanto na área diagnóstica como na investigação científica.

Em 1973, sempre juntos, iniciaram o Programa de Pós-graduação em Patologia Humana, sob a forma de mestrado, logo reconhecido pela CAPES. O programa – de ponta –  atraiu jovens patologistas de várias áreas do Brasil e da Europa.  Anos depois, em 1990 foi estendido ao  doutorado, atualmente nível 6 na avaliação da CAPES.

Sônia e Zilton muito contribuíram à compreensão da patologia da esquistossomose, da doença de Chagas e das leishmanioses. Foram pioneiros na introdução de métodos de coloração, técnicas de imunofluorescência, microscopia eletrônica, histoquímica, entre outras, no estudo de doenças tropicais. O curso de pós-graduação em Patologia Humana da UFBA-FIOCRUZ teve papel primordial na formação dos quadros profissionais – não menciono nomes para não incorrer em omissão, mas foram dezenas de pesquisadores – que hoje trabalham na consolidação de um dos mais produtivos centros de pesquisa do país.

Zilton e Sônia cumpriram todas as etapas da vida acadêmica (doutorado, pós-doutorado) e ele, desta vez sozinho, seguiu vitorioso na Livre Docência e no concurso para Professor Titular. Ambos têm produção científica impressionante (contabilizei mais de 350 artigos). O reconhecimento dos méritos científicos e acadêmicos de Sônia e Zilton pode ser facilmente atestado pela quantidade de prêmios e condecorações às quais fizeram jus ao longo de suas vidas (contabilizei mais de 30), mas menciono aqui apenas um: a de Professores Eméritos da UFBA, homenagem maior da nossa comunidade aos seus membros docentes.

Durante a saudação feita aos nossos homenageados, tratei-os por ‘’Sônia’’ e ‘’Zilton’’. Não considerem isso uma falta de elegância ou de respeito para com eles. Ambos foram amplamente reconhecidos pelos seus préstimos à ciência e à vida acadêmica ao longo das suas trajetórias. Da minha parte, procurei render homenagens hoje não apenas aos cientistas, mas à pessoa de Zilton e à pessoa de Sônia, e esta, enaltecida, prescinde de títulos. Ambos, em sua vida de dedicação à Universidade, congregam três dos princípios que caracterizam tão complexa entidade: a diversidade, porque foram plenos em suas atividades de ensino, de pesquisa e extensão, todas promotoras de transformação social; a universalidade, porque compartilharam com  muitos e para muitos o seu saber; e a unidade, porque, embora tenham seguido cada um sua trilha de conquistas, foram, em muitos momentos, um só,  razão pela qual, a comunidade UFBA hoje os reverencia.

 

O agradecimento de Zilton Andrade

Excelentíssimo Sr. Reitor da Universidade Federal da Bahia, João Carlos Salles, colegas acadêmicos, amigos, e demais participantes do Fórum Social Mundial 2018. Venho em meu nome e no de Sonia, minha companheira de carreira e da vida inteira, agradecer a deferência da UFBA por esta homenagem, que muito nos honrou, coroando nossa carreira científica, que teve o seu início nesta instituição, através da qual desenvolvemos atividades de grande relevância na nossa trajetória, que se baseou nas áreas de ensino, estudo e pesquisa. Voltamo-nos essencialmente para o estudo das doenças tropicais, endêmicas nas populações mais necessitadas, como deve ser a postura de um representante de universidade pública, em relação a sociedade que representa. Agradecemos também, em especial, ao Dr. Luis Adan e ao Dr. Mittermeyer, por suas palavras. No mais, desejamos vida longa à UFBA, ao Fórum Social Mundial, e à democracia.

 

 

 

Fotos de João Alvarez (cerimônia) e Dario Guimarães Neto (cortejo)

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