Os ancestrais diretos das plantas terrestres podem ser mais antigos e de estrutura celular bem mais simples do que a ciência atualmente acredita. Estudos genômicos feitos pelo biólogo Luiz Eduardo Vieira Del Bem, professor visitante do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da UFBA, indicam que a origem de todas as plantas terrestres remonta ao aparecimento de algas unicelulares terrestres, o que teria acontecido há pelo menos 600 milhões de anos atrás – e não há 470 milhões, como sugere a teoria atualmente mais aceita. Ademais, o estudo indica que essas algas seriam unicelulares, e não multicelulares, como a maioria dos pesquisadores supõe.
Se levarmos em conta que o início da colonização do ambiente terrestre pelas plantas foi fator determinante para a criação de condições básicas para o surgimento de outras formas de vida em terra, pelo fato de elas estarem na base da cadeia alimentar, o que Del Bem propõe é um marco novo para um dos mais significativos eventos do “calendário cósmico”. Se os 15 bilhões de anos do universo pudessem ser resumidos em 12 meses, os ancestrais mais antigos das plantas teriam saído da água e começado a se espalhar pela terra cerca de três dias antes do que atualmente se acredita, ali por volta do dia 18 de dezembro. No calendário cósmico, analogia ilustrativa proposta pelo astrofísico Carl Sagan em que um segundo equivale a 475 anos, as primeiras árvores teriam surgido no dia 23 de dezembro, e os primeiros homens, somente no final do último dia do ano.
Além de mais antigas, as algas que deram origem às plantas podem também ser bem menos complexas do que se supunha, segundo o estudo do professor Del Bem. Em seu mais recente trabalho, o artigo “Xyloglucan evolution and the terrestrialization of green plants” (A evolução do xiloglucano e a terrestrialização das plantas verdes), realizado inteiramente na UFBA e publicado nesta semana pela revista científica New Phytologist (a segunda mais relevante do mundo no campo de genética e biologia molecular de plantas, no ranking do Google Acadêmico), Del Bem afirma que as plantas terrestres surgiram diretamente de uma variedade terrestre das algas carófitas unicelulares, e não das algas carofícias (multicelulares e de água-doce), contrariando a hipótese hoje hegemônica no campo da evolução de que as primeiras algas que “saíram da água” para dar origem às plantas já eram organismos complexos.
Del Bem chegou a essas descobertas após um estudo de pesquisadores ingleses e alemães, publicado em janeiro deste ano na mesma revista, ter demonstrado que o xiloglucano (polímero que forma a parede celular de todas as plantas) é secretado pelas raízes das plantas terrestres. Esse composto é capaz de modificar as propriedades do solo. O pesquisador então analisou a origem evolutiva de cada um dos genes que sintetiza e degrada o xiloglucano (10 tipos de enzimas) e concluiu que eles surgiram antes das plantas terrestres, em algas carófitas ainda unicelulares. Del Bem, então, se perguntou: “por que algas aquáticas produziriam um modificador do solo?” E, em seguida, postulou que seria mais lógico assumir que tanto as plantas terrestres (embriófitas) quanto as carofícias (que vivem em água-doce) tenham um ancestral comum, e que esse ancestral era terrestre, o que justificaria sua capacidade de produzir o xiloglucano, considerado um “direcionador evolutivo para a vida terrestre”, segundo o pesquisador.
O trabalho de Del Bem confirma uma hipótese levantada nos anos 1980 pelos geneticistas G. L. Stebbins e G. J. C. Hill, que duvidaram de que as primeiras algas terrestres fossem pluricelulares. Caso se consolide no campo, a proposta de Del Bem pode significar uma nova pista para que paleontólogos possam encontrar fósseis em camadas geológicas com mais de 600 milhões de anos – os pedaços mais antigos de ancestrais das plantas já encontrados são esporos (estruturas reprodutivas que, por serem mais rígidas, tendem a se fossilizar mais facilmente do que os tecidos moles de algas e plantas) com idade de 470 milhões de anos. “Nunca se achou nada mais antigo do que isso, até porque não se costuma procurar”, observa o professor.
‘Baleia’ das algas
A hipótese se comprovou após Del Bem analisar em computador 80 genomas (13 plantas terrestres e 67 de algas) e verificar que pelo menos duas espécies de algas unicelulares, que têm formas terrestres e apareceram no planeta antes das carofícias – as chamadas carófitas, mais especificamente da família Klebsormidiophyceae – possuem, à semelhança das plantas, enzimas responsáveis pela fabricação e degradação do xiloglucano. O pesquisador acessou os genomas em bancos de dados públicos (OneKP project, NCBI EST database e Sequence Set Browser) e os analisou utilizando algoritmos matemáticos capazes de identificar genes comuns dos genomas das plantas e das algas, o que permite determinar relações de “parentesco evolutivo” entre elas. Já a estimativa de datação do momento em que elas apareceram é possível por meio da “teoria do relógio molecular”, que pressupõe que mutações genéticas acontecem com uma certa regularidade ao longo do tempo. O custo direto de todo o trabalho que resultou no artigo foi praticamente zero, já que todo o trabalho usou dados públicos e um notebook.
No artigo, o pesquisador propõe uma nova linha evolutiva para as plantas terrestres, que passam a aparecer diretamente ligadas a algas mais simples. “Em algum momento, uma população de algas simples, unicelulares, saiu da água para a terra, onde posteriormente evoluiu para organismos complexos, pluricelulares, e começou a colonizar a terra”, afirma Del Bem. No novo esquema, algas complexas como Chara e Nitella deixam de ser as ancestrais diretas das plantas terrestres e passam a ser entendidas como espécies que também possuem um ancestral terrestre – que, em algum momento, “retornaram” para a vida aquática. “É mais ou menos como as baleias, que, por terem pulmões e resquícios das pernas traseiras, por exemplo, nos permitem afirmar que já tiveram, um dia, um ancestral terrestre”, compara Del Bem.
Especialista em genes de plantas ligados ao xiloglucano, tema sobre o qual se debruça desde o mestrado, e que já resultou em outra publicação em revista internacional especializada (“Evolution of xyloglucanrelated genes in green plants”, na BMC Evolutionary Biology, em 2010), Del Bem tem 33 anos e é doutor pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com pós-doutorado pela Harvard University (EUA). Desde setembro do ano passado, é professor visitante do Instituto de ciências da Saúde e integra o Programa de Pós-graduação em Bioquímica e Biologia Molecular (PMBqBM) do instituto. O edital de contratação de aproximadamente 70 professores visitantes foi lançado em março do ano passado pela UFBA, visando fortalecer os programas de pós-graduação e a evolução de sua busca por excelência acadêmica.